Correio braziliense, n. 19.221, 10/01/2016. Brasil, p. 5

A doença escondida na sucata

CEMITÉRIOS DE LATA » Sem regulamentação para descarte, sucatas de carros são porta aberta para proliferação do Aedes aegypti. Especialistas afirmam que pilhas de ferro velho preocupam por causa da falta de regras para destinação do material

Por: NATÁLIA LAMBERT

 

Há uma semana, o catador de resíduos sólidos Edilton Barbosa, 45 anos, tenta se recuperar do segundo quadro de dengue. Desta vez, ele está lidando melhor com a doença que há dois anos deixou-o na cama e sem apetite. A cada semana parado, Edilton perde em média R$ 250. “A situação está difícil. Trabalhei na marra alguns dias. Não dá para ficar sem receber.” O contato diário com o lixo faz com que a proliferação do mosquito Aedes aegypti seja uma preocupação constante das associações de catadores do país. Em meio ao lixão, garrafas, plásticos, pneus e uma série de materiais acumulam água, em especial, na época das chuvas. As chamadas sucatas do transporte também são porta aberta para a doença. “A gente não deixa o material acumular, estamos sempre limpando, mas, infelizmente, dependemos da educação das pessoas que não dão destino correto ao lixo”, comenta Edilton.

Apesar da questionável educação das pessoas, a destinação dos resíduos sólidos no Brasil está muito longe da ideal. A série de reportagens Cemitérios de Lata, publicada pelo Correio em agosto do ano passado, mostrou que o país produz, por ano, mais de 4 milhões de toneladas de sucatas do transporte — um lixo formado por carros, motos, ônibus e máquinas de diferentes tipos, incluindo aviões, trens e navios. Por não haver previsão legal a respeito da destinação desse tipo de material, a montanha de entulho é um problema para o poder público, sociedade, meio ambiente e saúde. Sancionada há cinco anos, a Política Nacional de Resíduos Sólidos não determina regras de reciclagem e reaproveitamento das carcaças.

Nesse momento, em que o combate ao mosquito Aedes aegypti virou uma questão de saúde pública, a pilha de ferro velho se torna uma grande preocupação. Somente nos pátios da Polícia Rodoviária Federal, 60.078 veículos enferrujam a céu aberto. O professor de medicina da Universidade Federal de Pernambuco Carlos Brito ressalta que o desafio é enorme. “São entulhos sem dono, sem controle, sem cobertura e com um grande potencial de acúmulo de água”. Para o médico, é necessário que o poder público reveja esse vácuo legal em que se encontram esses resíduos. “Não estamos conseguindo combater o mosquito. O aumento no número de casos da doença é a prova de que estamos fracassando.”

De acordo com dados do Ministério da Saúde, foram registrados, até 14 de novembro do ano passado, 1.587.080 casos prováveis de dengue, 17.765 da febre chikungunya, sendo 6.726 confirmados, e a presença do vírus zika em 19 unidades da Federação. As doenças têm em comum o mosquito transmissor. E, em consequência ao surto de zika, estão sendo investigados 3.174 casos de bebês com suspeita de microcefalia — doença que pode causar deficiências físicas e neurológicas. A pasta ressalta que os gestores estaduais têm papel fundamental. “É importante que os gestores assumam as responsabilidades para esse enfrentamento contra o mosquito. O êxito dessa medida exige uma ação nacional, que envolve a União, os estados, os municípios e a população em geral”, destaca, por meio de nota.

 

Regras estaduais

Em Pernambuco, estado em emergência por causa do surto de microcefalia em bebês, com 1.185 casos suspeitos, o trabalho para retirar as carcaças de automóveis abandonadas pela cidade acontece desde 2013, ano em que foi sancionada a lei municipal nº 17.936. Já foram recolhidos mais de mil veículos. “A prefeitura do Recife iniciou a resolução de um problema histórico, tendo em vista que os carros abandonados têm obstruído a mobilidade, além de serem usados de abrigo para moradores de rua, consumo de drogas e proliferação do Aedes aegypti”, afirma, por meio de nota, a prefeitura do Recife. Além disso, o texto destaca que, ao identificar um foco do mosquito em sucatas, os agentes de saúde realizam a eliminação dos criadouros de maneira mecânica ou por meio de tratamento com larvicidas biológicos.

Pelo Código de Trânsito Brasileiro, o poder público pode leiloar veículos recolhidos não reclamados pelos donos há mais de 90 dias. As regras específicas sobre a apreensão das sucatas do transporte, no entanto, são próprias de cada estado. Em São Paulo, até novembro de 2015, foram realizadas 1.662 remoções de veículos abandonados. De acordo com a Lei de Limpeza Urbana, o abandono de automóveis em vias públicas prevê multa no valor aproximado de R$ 16 mil. No Rio de Janeiro, a Companhia Municipal de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro (Comlurb) retira das ruas uma média de 600 carcaças por ano. De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, os agentes de vigilância ambiental vistoriam rotineiramente os pátios públicos para onde são enviados os carros recolhidos.

 

Perigo na vizinhança

Criada em fevereiro de 2011, a Operação Sucata já recolheu 493 carros abandonados no Distrito Federal. Coordenada pelo assessor especial do Detran-DF Gustavo Viana, a ação enfrenta diversas dificuldades, a começar pela falta de espaço para alocar os veículos. Viana explica que, das 31 administrações, somente nove têm espaço nos pátios para abrigar as sucatas. “As administrações só recebem os carros recolhidos no local. Não posso levar de uma para outra. No Plano Piloto, por exemplo, tem uns 200 veículos abandonados e não tenho para onde levá-los. Esses veículos são um transtorno para quem mora por perto”, comenta Viana.

Para o mecânico José Dantas do Nascimento, 40 anos, o medo de contrair dengue é constante. A oficina em que trabalha, no Setor de Oficinas Norte, está cercada por sucatas de veículos. “Nessa época de chuva, a gente está sempre preocupado. Não tem como retirar essas carcaças daí, então, a gente fica jogando água sanitária e creolina na água da chuva que se acumula.” No Distrito Federal, há previsão de remoção se decorridos 30 dias sem qualquer movimentação de automóveis, ônibus, motos e similares. Em caso de acidente, o prazo cai para 48 horas. Se provocar grave perturbação do trânsito, 24 horas.

De acordo com o professor do grupo de estudos ambientais da Universidade de Brasília (UnB) Gustavo Souto Maior, o primeiro problema é o cidadão que abandona um veículo na rua. “É uma irresponsabilidade que não faz sentido.” O especialista afirma que é um absurdo a legislação não prever uma destinação para esse entulho. “Vivemos um problema sério de saúde pública com essa epidemia das doenças causadas pelo Aedes aegypti. Essas sucatas viram grandes criadouros do mosquito e tem de se arrumar uma solução. Não adianta o cidadão cuidar da própria casa se nas redondezas têm um criadouro a céu aberto.”