Correio braziliense, n. 19.221, 10/01/2016. Cidades, p. 20

Diagnósticos da desigualdade

SAÚDE » Durante dois anos, pesquisadores da UnB percorreram o Lixão da Estrutural, o maior da América Latina, para traçar as condições de vida, de trabalho e de saúde dos catadores. Expostos a gases e carregando peso, eles estão propícios a doenças crônicas

Por: ROBERTA PINHEIRO

 

“Aqui se envelhece rápido.” A afirmação é do catador de material reciclável Nereu Bernardes dos Santos, 45 anos. Todos os dias, ele chega por volta das 2h ao Aterro Controlado do Jóquei, o Lixão da Estrutural, e trabalha até as 16h. A rotina é a mesma há mais de 10 anos. “O serviço é muito pesado e desgastante. Tem o sol, o gás, o risco de pisar em caco de vidro, ferro”, descreve. Nereu ainda se queixa das frequentes dores de barriga. O trabalhador reconhece a insalubridade e os riscos do serviço. Mas, diante das montanhas de lixo que os caminhões descarregam a todo momento, ele também enxerga o sustento da família.

O relato de Nereu não é diferente de outras histórias escondidas por trás das roupas compridas e dos rostos encapuzados do maior lixão da América Latina. Também vai ao encontro do trabalho desenvolvido na Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília (UnB). Entre 2011 e 2013, um grupo de professores e alunos desenvolveu estudos com a população de catadores de material reciclado para mostrar as condições de vida, de trabalho e de saúde dessas pessoas.

“Em 95% dos casos, elas têm consciência de que o ambiente de trabalho é perigoso ou muito perigoso. Os indicadores revelam que a qualidade de vida ali é precária. Elas devem sobreviver menos, mas ainda não temos dados para afirmar isso”, comenta a professora Leonor Maria Pacheco Santos. A pesquisadora aponta que aqueles trabalhadores estão expostos a gases, carregam muito peso, reclamam de dores nas costas e doenças crônicas, como pressão alta, trabalham à noite, têm problemas respiratórios, entre outras queixas. “Sem falar que o próprio lixo, quando se deteriora, produz bactérias. Agora, por exemplo, o lixão é um ambiente propício para a propagação do mosquito Aedes aegypti em grande escala.”

Há mais de 40 anos, o aterro funciona ilegalmente e, com o passar do tempo, a área cresceu e se tornou uma cidade com vida própria. O Lixão da Estrutural é aberto 24 horas por dia. São mais de mil catadores de material reciclado e quase 3 mil toneladas de lixo diariamente. É um território cujas leis foram criadas pelos próprios trabalhadores, que, em grande parte, respiram aquele ar há anos. “Não pode mexer com os cachorros que ficam do lado dos begues (o saco onde armazenam o material recolhido). Eles avançam, porque estão tomando conta para os donos”, alerta o funcionário do Serviço de Limpeza Urbana (SLU) que acompanha a reportagem.

Da mesma forma que aprenderam a seguir as regras do aterro, os catadores encontraram estratégias para minimizar os riscos à saúde. “O lixo hospitalar reconheço pela cor, e a gente tenta não pegar, mas já me furei com agulha e seringa”, conta Jhonatan Rodrigo Mesquita Silva, 26. Com um fone de ouvido e uma luva amarela, o rapaz separa o material que será vendido. “Sinto muita falta de ar e dor no coração. Aqui, tem a Junta Médica, mas é a mesma coisa que nada. Quando preciso, vou ao Guará ou à Asa Norte.” No dia em que procura uma unidade de saúde para relatar as dores, deixa de faturar cerca de R$ 70 do trabalho.

“Corte é frequente”, afirma a catadora Francisca Orlena de Oliveira, 32. Há mais de 10 anos, ela enfrenta o sol e as dificuldades do trabalho no lixão. No entanto, preferiu trocar o serviço na separação que ocorre em um galpão para mexer diretamente nas descargas dos caminhões. “Dá mais dinheiro. Apesar de que alguns dias sabemos que não vamos conseguir praticamente nada”, justifica. Para Francisca, os riscos que ela corre são como outros que ela teria fora dali. “Tinha mais crise de sinusite antes de começar a trabalhar aqui.” No entanto, a catadora confessa que, durante as gestações dos filhos, trabalhava à noite para evitar a exposição ao sol e o tumulto. “À noite, é mais tranquilo, tem menos gente disputando o lixo. Preferia para evitar que batessem na minha barriga.”

 

Alimentação

Nos estudos da Faculdade de Saúde da UnB, outro dado que chama a atenção é a insegurança alimentar dessa população. De acordo com as pesquisas, 55% das famílias informaram que comem alimentos catados no lixo. A situação ameaça a qualidade de vida e a saúde dos trabalhadores e os expõe a diarreias e também a doenças mais graves. Questionados pela reportagem, vários catadores afirmaram terem ingerido substâncias que chegavam, sobretudo, de descargas de supermercados.

Na hora do almoço, por exemplo, um outro cenário salta aos olhos. Envoltos por mosquitos, os trabalhadores abrem as marmitas e comem ao lado do lixo. Além disso, dentro do aterro, entre dois pontos de descarga,  vendedores de comida dividem espaço com os cachorros, os cavalos e a sujeira. “Há um restaurante popular próximo, mas os catadores não frequentam porque têm que tomar conta do begue. E esse tipo de comércio dentro do lixão é proibido pela legislação brasileira, mas é a forma de sobrevivência, tanto de quem compra quanto de quem vende”, esclarece Leonor Pacheco.

Na avaliação da pesquisadora, não há estratégia de saúde que resolva a situação atual do aterro. “O sistema de saúde não tem como dar conta sozinho de outros determinantes sociais. Ali, tem uma alta contaminação ambiental, uma população de baixa renda e de baixa escolaridade. Então, a atuação tem que ser multissetorial”, afirma. “O problema não está no trabalho dos catadores, mas na forma como ele é feito. A catação dos resíduos deve ocorrer em esteiras, dentro das usinas de reciclagem, com todo o equipamento de proteção individual.” Desde 1992, Pedro Celestino Dias de Oliveira, 65, reveza o serviço no lixão com viagens à Bahia para visitar a família e também trabalhar em território nordestino. “Só Deus mesmo para livrar muita gente disso daqui (lixão), mas foi com o dinheiro daqui que criei meus filhos”, afirma o senhor, que sofre com pressão alta.

 

Oficial

No Brasil, a profissão de catador de material reciclável foi reconhecida e oficializada em 2002, pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Porém, esse reconhecimento não trouxe melhorias nas condições de vida e de trabalho dos catadores e de suas famílias.

 

41%

dos entrevistados revelaram não fazer nenhum tipo de tratamento na água

 

65%

tinham acesso ao esgotamento sanitário

 

90%

relataram a presença de roedores e baratas na residência

 

Conclusões

Percepção sobre as condições de saúde e de acesso aos serviços de saúde por catadores de materiais recicláveis no Lixão da Estrutural

 

» Nem  todas as quadras incluídas na pesquisa eram cobertas pela Estratégia Saúde da Família, o que está de acordo com o resultado encontrado: 66% dos domicílios     pesquisados recebem a visita dos agentes comunitários de  saúde.

» Quase um terço dos trabalhadores informou estar doente e cerca de 20% apresentaram episódio de diarreia recentemente.

» É  alta a proporção de catadores que relataram ter sofrido algum acidente de trabalho.

» O acesso ao atendimento médico é mais frequente que ao  atendimento odontológico

 

Fonte: Vulnerabilidade socioambiental e fome: a miséria vivida por catadores de materiais recicláveis em um lixão.

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Mudança à vista

A Estrutural é atendida pelo Centro de Saúde nº 04, responsável por aproximadamente 32 mil habitantes. Na região, segundo a assessoria de imprensa do Serviço de Limpeza Urbana (SLU), também estão lotadas cinco equipes do Programa Família Saudável. A área começou a ser formada por catadores que trabalhavam no lixão, mas, hoje, o aterro atrai pessoas de diferentes regiões administrativas do DF.

Segundo listagem elaborada pelos trabalhadores, foram identificados 2.362 catadores. Contudo, o SLU não confirma esse número, em função do levantamento realizado em 2012 e que constatou a presença de 617 pessoas. Além disso, em 2014, outra pesquisa realizada com o apoio da Secretaria de Desenvolvimento Humano e Social aferiu a presença de 1.690 catadores. “Vale registrar que o número de catadores varia muito em função da absorção sazonal de trabalhadores na indústria da construção civil; variações na economia e mercado de trabalho; e pela presença esporádica de moradores que buscam a catação para complementação da renda familiar”, informaram por meio de nota.

Por fim, em 2010, a Lei nº 12.305 instituiu a política nacional de resíduos sólidos, que, entre algumas regras, determinou a extinção dos lixões. Para acabar com o Lixão da Estrutural, o maior da América Latina, está em construção no DF o Aterro Sanitário Oeste — ASO, localizado entre Ceilândia e Samambaia. De acordo com informações do SLU, as obras devem ser entregues em meados deste ano. “Já foram feitas as células para recebimento dos resíduos e aplicada a manta impermeabilizadora que evita a contaminação do lençol freático. O asfaltamento das vias internas também foi concluído. A próxima fase prevê licitação para a construção das vias de acesso e a construção dos edifícios (sede administrativa, guarita).”

No entanto, o projeto ainda causa dúvidas sobre o que vai acontecer com a cidade que se formou em torno do lixão e também com o que será feito no novo aterro. Segundo a assessoria de imprensa do SLU, os projetos voltados aos catadores não estão vinculados diretamente às obras do novo aterro. Há programas na Secretaria de Desenvolvimento Humano e Social, como o Pró-Catador, e na Secretaria do Meio Ambiente.