Correio braziliense, n. 19.228, 17/01/2016. Cidades, p. 22

Audiências da discórdia

 

O Brasil levou 46 anos para pôr em prática um compromisso assumido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos em 1969 de apresentar todo preso em flagrante em 24 horas a uma autoridade judicial. Em setembro do ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deu 90 dias para que todos os tribunais de Justiça do país se adequassem à medida. O novo modelo, porém, causa grande debate nos meios policial e jurídico, a ponto de muitas decisões judiciais serem questionadas. Desde que foi formado no DF, em outubro do ano passado, o Núcleo de Audiência de Custódia (NAC) local analisou 2.322 detenções: em 57% dos casos (1.334), o preso recebeu direito de responder em liberdade; os outros 43% seguiram em cárcere.

No DF, o assunto ganhou força após o delegado Rodrigo Larizzati postar um vídeo nas redes sociais criticando a soltura de dois traficantes detidos no dia anterior. Os sindicatos da Polícia Civil aproveitaram o desabafo para subir o tom das críticas ao NAC. Para as entidades, o núcleo ajuda no crescimento da violência na capital, pois, além de exigir efetivo da corporação (100 homens por dia acompanham os presos nas audiências), libera criminosos perigosos. O índice alto de soltura também incomoda parte dos promotores e juízes.

Há, porém, quem exalte a nova instituição e a classifique como um avanço para os direitos humanos dos brasileiros. O professor de direito penal no Uniceub Álvaro Castelo Branco acredita que erros pontuais são normais e que é necessário aperfeiçoar o sistema. “A instituição pode ter cometido equívocos como qualquer outra. Mas a tendência é que haja uma evolução e entregue um trabalho satisfatório”, observa.

Antes das audiências de custódia, o delegado lavrava o auto de prisão, o enviava para o juiz da Vara mais próxima e o magistrado avaliava o caso a partir daquele documento. No DF, esse processo não levava mais do que um dia; em outros estados, contudo, chegava a demorar um mês. Agora, ainda é o juiz que determina a manutenção da prisão, mas a decisão não se dá apenas com base no auto policial. Na audiência, realizada no máximo 24 horas depois da detenção, também estão presentes o acusado, a defesa e um promotor de Justiça.

 

Economia

O modelo causou ainda mais revolta entre os contrários ao projeto pela forma como foi anunciado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Ricardo Lewandowski. “Pretendemos, dentro de um ano, deixar de prender cerca de 120 mil presos, o que representa uma economia de R$ 4,3 bilhões para o Estado. São pessoas que vão responder a processo criminal, mas em liberdade. O juiz aplicará medidas cautelares, como tornozeleiras eletrônicas, prisão domiciliar, apresentação periódica ao magistrado, restrição de movimentos”, afirmou Lewandowski.

O diretor financeiro do Sindicato dos Delegados de Polícia do DF (Sindepo), Rafael Sampaio, considera um “absurdo” haver uma meta de desencarceramento. Ele cita o caso de um traficante que foi solto duas vezes pela NAC. “As avaliações são feitas de forma equivocada. Colocam em liberdade pessoas claramente perigosas, indivíduos reincidentes em crimes graves”, critica. Um dos argumentos de Lewandowski é de que há muitos presos provisórios no sistema carcerário. Sampaio, no entanto, afirma que isso acontece exatamente por culpa da Justiça. “Tem excesso de temporários porque não são julgados de forma célere”, diz. Para ele, há uma “política de impunidade”.

Integrantes da polícia estimam que, antes das audiências de custódia, o percentual de soltura após a detenção era de 11%. Depois do NAC, esse índice teria subido para 33% em novembro, 44% em dezembro e, até 9 de janeiro, chegou a 50%. Outra crítica é sobre a forma como foi instituído o novo rito. Para muitos, a mudança no trâmite teria de ser aprovada pelo Congresso Nacional — não poderia começar a valer apenas com uma resolução do Conselho Nacional de Justiça. Castelo Branco concorda com o argumento. “A grande regra é que tudo seja disciplinado por lei. Uma resolução só normatiza; não é uma lei, como determina a Constituição”, diz.

 

Adaptação

O juiz assistente da corregedoria do TJDFT, Pedro de Araújo Yung-Tai Neto, discorda da posição dos sindicatos da polícia e garante que a corporação ajuda muito na adaptação ao novo rito. “O Brasil foi um dos países signatários do pacto de 1969. Desde lá, nós nos comprometemos formalmente em apresentar qualquer pessoa presa dentro de 24 horas a uma autoridade jurídica. E essa autoridade é o juiz”, ressalta. Ele não considera alto o índice de soltura e afirma que os magistrados agem com a ferramenta que têm: a lei. “A primeira coisa que pensamos é se a pessoa condenada, quando julgada, receberá pena de prisão. Qualquer um que pegue até quatro anos de reclusão, se for réu primário e tiver bons antecedentes, pode substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de diretos”, explica.

O juiz acredita que erros podem ter ocorrido por parte dos juízes, “como acontece em qualquer profissão por se tratarem de seres humanos”, analisa. “Mas os equívocos são raríssimos. E, mesmo se foi errada, aquela decisão é recorrível”, diz. O juiz Fernando Barbagalo também defende as audiências de custódia. “É utopia pensar numa sociedade sem crimes. Igualmente utópico (ou inocente) é o pensamento majoritário no Brasil atual de que a punição penal pode diminuir e quiçá acabar com a criminalidade sempre crescente”, afirma.

Órgãos relacionados:

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Um compromisso pelos Direitos Humanos

O Brasil ocupa, hoje, a terceira posição mundial entre os países com o maior número de presos. A população carcerária brasileira ultrapassa os mais de 600 mil presidiários, amontoados em celas, muitas vezes em condições sub-humanas e sem uma chance efetiva de ressocialização.

De acordo com o Ministério da Justiça, mais de 40% dessas pessoas estão submetidas a prisões cautelares, medida que, conforme o art. 5º, LVII da Constituição, deveria ser aplicada apenas em casos excepcionais. Muito distante da realidade a que assistimos, a exceção tem se tornado a regra. Presos provisórios transformam-se em reféns do crime organizado e, para sobreviver nas prisões, são submetidos às regras impostas por facções criminosas, que comandam os presídios e continuam a praticar os mais diversos crimes.

A situação caótica que temos visto pelo país afora exige medidas concretas de combate e um dos mais importantes mecanismos — há muito validado pelo governo brasileiro por meio do Pacto de San José — são as audiências de custódia que consistem na apresentação imediata do preso a um juiz nos casos de prisão em flagrante, para que os magistrados possam fazer uma primeira avaliação sobre o cabimento e a necessidade de manutenção da prisão ou a imposição de medidas alternativas ao cárcere.

Em maio de 2015, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) manifestou apoio à implementação das audiências de custódia nos Tribunais de Justiça de todo o País. A medida foi aprovada por ampla maioria.

As audiências têm apresentado resultados muito positivos. Mais da metade dos presos em flagrantes são liberados quando não há a necessidade da prisão, ainda que delitos tenham sido cometidos.

 

João Ricardo Costa, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros

 

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