O Estado de São Paulo, n. 44650, 16/01/2016. Espaço aberto, p. A2

Uma Base em construção

Por: Denis Mizne / Camila Pereira

A educação brasileira tem uma importante e difícil tarefa a cumprir neste 2016, que se inicia: aprovar uma Base Nacional Comum para os currículos das escolas de todo o País.

Muito já se falou sobre os ganhos que essa Base pode trazer: mais clareza sobre aquilo que todos os alunos têm direito de aprender; equidade no acesso a conhecimentos essenciais; alinhamento entre o que acontece nas salas de aula e a formação de professores, as avaliações e os materiais didáticos. Trata-se de uma política educacional chave para garantir o aprendizado e, por isso mesmo, adotada por praticamente todos os países com sistemas de educação bem sucedidos.

No Brasil, a construção da Base é um dos poucos temas que contam com amplo apoio de diferentes correntes da educação, além de ser uma forte demanda daqueles que estão no dia a dia à frente das escolas. Mais de 93% dos professores e secretários municipais de Educação concordam que saber o que é esperado que os alunos aprendam a cada ano escolar facilita o trabalho em sala de aula.

Obviamente, não é qualquer Base que vai contribuir para melhorar a educação brasileira. Para que realmente cumpra essa função a qualidade do documento é inegociável. E, nesse sentido, os desafios nos próximos meses ainda são grandes.

Desde a divulgação da versão preliminar, o Movimento pela Base Nacional Comum – grupo não governamental de profissionais e pesquisadores da educação que, desde 2013, atua pela construção de uma Base de qualidade – vem organizando leituras críticas. Foram ouvidas mais de 15 instituições de referência e 150 pessoas, entre professores e coordenadores de escolas e especialistas nacionais e internacionais. O resultado desse trabalho deixa claro que o primeiro rascunho ainda apresenta fragilidades e que para chegarmos a uma versão final de alta qualidade será preciso fazer revisões importantes de conceitos e mudanças estruturais.

Entre os principais pontos de atenção aparecem, por exemplo, os problemas no sequenciamento das habilidades ao longo dos anos e a desconexão entre o que dizem os textos introdutórios da Base e o que indicam os objetivos de aprendizagem. Também são apontadas questões mais específicas de determinadas etapas ou áreas, como a necessidade de oferecer diferentes opções de percursos no ensino médio e os problemas com o rigor e clareza dos objetivos de aprendizagem de alfabetização.

No relatório completo, disponível no site do Movimento, é possível ter detalhes de todos os pontos de atenção e conhecer propostas concretas para avançar em cada um deles. O material foi apresentado ao Ministério da Educação (MEC) em dezembro.

Muitas outras análises têm sido feitas. São críticas e sugestões que aparecem na imprensa, nas centenas de debates realizados em Estados e municípios e nos mais de 9 milhões de contribuições online que o MEC recebeu na consulta pública. Como em outros países, o documento de História, especialmente, tem provocado grande polêmica – e o próprio MEC reconhece que esse é um dos pontos críticos da versão preliminar da Base.

É interessante observar que para os especialistas internacionais consultados o fato de haver ainda muito a melhorar não é exatamente uma surpresa. “A primeira versão é só um rascunho, é natural que tenha muitas fragilidades”, afirmou em recente entrevista o britânico Dave Peck, que trabalhou nos padrões curriculares do Reino Unido, do Chile e de outros países. O especialista Phil Daro, que liderou a redação dos padrões de Matemática nos Estados Unidos, aponta melhorias necessárias nessa disciplina escolar, mas afirma em seu parecer: “Trata-se de um bom rascunho, que precisa de atenção sistemática para tornar mais coerente o sequenciamento dos aprendizados ao longo dos anos”.

A experiência de outros países mostra que uma discussão nacional como essa passa, necessariamente, por difíceis debates entre teorias pedagógicas, contrapõe visões de mundo e concepções distintas sobre a escola. Por isso mesmo, é um processo que exige ampla consulta pública; e o documento, mesmo depois de aprovado, continua a passar por sucessivas revisões. A Coreia do Sul, por exemplo, já está na sétima versão de seu currículo (desde os anos 1950). Na Austrália, ajustes pontuais são feitos periodicamente. A cada nova versão, o debate nacional amadurece com o conhecimento acumulado.

Com todos os seus pontos a melhorar, a versão preliminar da Base cumpre o importantíssimo papel de dar concretude, pela primeira vez no Brasil, à discussão sobre o que é essencial que todos os alunos aprendam. Atualmente, se entrarmos em salas de aula pelo País, encontraremos em muitas delas um cenário distante do que poderia ser considerado ideal em relação ao que está sendo ensinado aos alunos. Ouvidos em pesquisa, metade dos docentes do País concorda que, “com frequência, os professores evitam trabalhar os conteúdos com os quais se sentem menos à vontade”. A partir da Base, essa passa a ser uma discussão mais ampla. É um passo fundamental e uma oportunidade única para que possamos, realmente, começar a melhorar.

Vale lembrar também que a Base não é o todo do que acontece nas escolas. Ela cobre apenas o conjunto de conhecimentos essenciais que deve ser comum a todos os brasileiros, permitindo espaço para a inclusão de outros conhecimentos e habilidades que cada rede – estadual ou municipal – julgar relevantes.

Para chegarmos a junho com um documento do qual o País possa orgulhar-se, pelo menos três condições serão indispensáveis: disposição do MEC para discutir publicamente e de forma transparente as sugestões e críticas feitas ao documento preliminar, capacidade técnica para realizar as mudanças necessárias e pressão social constante.

 

* DENIS MIZNE E CAMILA PEREIRA SÃO, RESPECTIVAMENTE, DIRETOR EXECUTIVO E DIRETORA DE PROJETOS DA FUNDAÇÃO LEMANN, QUE INTEGRA O MOVIMENTOPELA BASE NACIONAL COMUM