O globo, n. 30110, 14/01/2016. Opinião, p. 15

Erro médico em pauta

Alfredo Guarischi

A tradução literal do termo medical error para “erro médico” é um equívoco, pois simplifica um problema muito mais amplo. O sistema de saúde comporta dezenas de profissões igualmente importantes e, por motivos e desfechos diversos, todos os seus titulares cometem erros. Outro equívoco é buscar transferir responsabilidades, punir um culpado ou atribuir ao acaso os maus desfechos, desconsiderando o que realmente aconteceu. Quem lucra com isso é a “indústria do erro médico”, pois o reparo judicial — legítimo e necessário em determinadas situações — virou o principal modo de a sociedade se defender diante da imobilidade do sistema de saúde, público ou privado.

Neste domingo, o “Fantástico” apresentou alguns aspectos desse complexo problema. No exíguo tempo disponível, problematizou o conteúdo de uma das diversas caixas-pretas que ocorrem em todos os setores da atividade humana.

Esse é um fato mundial, e apenas em 1999, após a publicação dos números inimagináveis de erros que ocorrem no sistema de saúde americano, parece que “o sistema despertou”. Não dava mais para varrê-los para baixo do tapete; a hipocrisia foi derrotada. A Organização Mundial de Saúde acordou. Somente em 2013, o Ministério da Saúde do Brasil começou a se mexer, mas tem sido infeliz (incompetente, talvez) em entender o problema.

Também demorei a entendê-lo, mas, desde 2008, com a ajuda de amigos, realizo o Safety, que foi o primeiro congresso brasileiro sobre erro em medicina. Meus maiores parceiros foram a aviação, a Marinha e o Bope. Esses profissionais, independentemente da sua área de atuação, experiência e local de trabalho, discutem seus erros; suas palestras têm sido a chave do sucesso do Safety: pensar fora da caixa.

O erro é inerente à condição humana, o que não isenta da responsabilidade de se buscar evitá-lo; não sendo possível, deve-se mitigar suas consequências. Quando não se percebe ou seu dano é mínimo, há a ilusão de que não houve erro; contudo, não há acidente sem precedente.

Na aviação, a segurança melhorou ao se estudar e divulgar o conteúdo de sua caixa-preta. No entanto, os acidentes aéreos continuam ocorrendo, mas com menor frequência e gravidade. Humanos continuarão a errar. Máquinas continuarão a falhar.

Não existe e não existirá uma solução para um problema com diversos fatores contribuintes. Enquanto admitir o erro significar sempre culpa, o sistema se fecha cada vez mais. Quem está realmente preocupado com a prevenção sabe disso. A transparência não é utopia.

Com o Bope, aprendi que a coragem não é ausência de medo, e sim como o enfrentamos. Falar sobre erro não é simples. Dá medo.

Os profissionais e instituições que aceitaram contribuir para essa pauta foram corajosos. Foi doloroso, mesmo sendo todos eles comprometidos com a verdade. Apenas a cura poderia ficar sem explicação.

O “Fantástico” deu uma oportunidade para toda a sociedade refletir sobre a segurança na saúde.