Título: Fora de foco
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Fonte: Correio Braziliense, 30/09/2011, Opinião, p. 14
No país em que 1.500 mulheres morrem anualmente por complicações no parto, em que uma entre quatro sofre violência doméstica, em que a elas são pagos salários 34% menores que aos homens que desempenham funções iguais, causa espanto a falta de foco da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM). A titular da pasta, Iriny Lopes, se insurgiu contra peça publicitária veiculada na mídia eletrônica desde o dia 18. Nela, a modelo Gisele Bündchen protagoniza jogos de sedução para obter resposta satisfatória do marido.
O mesmo texto se repete em dois momentos. No primeiro, a modelo aparece vestida com trajes do dia a dia. "Errado", diz o anúncio. No seguinte, de lingerie amarela e com pose sensual, ela completa a frase com a pergunta "não é o máximo?" Uma voz em off aconselha: "Você é brasileira. Use seu charme". Iriny afirmou ter recebido denúncias de cidadãos de ambos os sexos contra a propaganda, que apresentaria cenas preconceituosas e discriminatórias.
A SPM enviou nota de repúdio à empresa e pediu a suspensão da campanha ao Conselho Nacional de Autorregulamentação (Conar). A razão: o anúncio reforçaria o "estereótipo equivocado da mulher como objeto sexual do marido" e ignoraria os avanços na desconstrução de práticas e pensamentos sexistas. Seria, pois, nocivo ao feminismo, que fincou raízes fundas no Brasil há cinco décadas.
O discurso da secretária soa velho. Lembra os idos dos anos 1960, quando as mulheres engrossaram as fileiras dos movimentos libertários mundiais. Estudantes, negros, comunistas saíram às ruas em busca de direitos. Impunha-se chamar a atenção interna e externa. As mulheres quebraram tabus: queimaram sutiãs em praça pública, desfilaram barrigas grávidas pelas areias da praia, aderiram ao amor livre. A pílula representou a carta de alforria do corpo. Com ela, o sexo se dissociou da gravidez.
Espaço ampliado, elas são maioria nas universidades, primeiras classificadas em concursos públicos, arrimos de família. Uma ocupa o mais alto cargo da República. Outra já presidiu o Supremo Tribunal Federal. Várias marcam presença no primeiro escalão do Executivo. Muitas conquistaram mandato para o Legislativo. Em suma: o tempo da coitadinha vai longe. A luta hoje é por voos mais altos. Em países avançados como Dinamarca, Noruega e Suécia, as mulheres conquistaram espaços generosos com a qualidade do trabalho.
Os brasileiros sustentam uma secretaria com status de ministério para mirar horizontes mais amplos. Educação, saúde, qualificação, isonomia, implementação de políticas públicas para assegurar a plenitude da cidadania devem fazer parte da plataforma do órgão. Há que perseguir um espaço de liberdade em que se assegure o direito de escolha. Em situações como as apresentadas por Gisele Bündchen, a mulher pode optar em usar chemise ou biquíni. A escolha é dela. Não da burocracia.