Correio braziliense, n. 19.235, 24/01/2016. Economia, p. 7

A luta diária contra a inflação

A fartura está virando escassez depois que o país voltou aos anos 1990, com custo de vida de dois dígitos e aumento do desemprego. Todas as classes sociais precisam se adaptar à disparada de preços

Por: MARIANA AREIAS E SIMONE KAFRUNI

 

O Brasil que voltou ao início dos anos 1990, com inflação de dois dígitos e desemprego em alta, está vendo a fartura virar escassez. Na luta diária contra a carestia, quem mais sofre são os pobres, à mercê de alimentos caros e indispensáveis. Mas o custo de vida, que subiu 10,67% no ano passado, medido pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), está pesado para todas as classes sociais e é preciso muito jogo de cintura para driblar os efeitos perversos do aumento desenfreado de preços.

O corretor de imóveis Marcelo Ramos, de 44 anos, conta como a inflação mudou a rotina da família. “Viajávamos com frequência, visitávamos os familiares da minha esposa, em Goiânia, toda semana. Mas, com a alta da gasolina, conseguir manter o padrão seria um luxo”, afirma. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que abastecer o carro ficou 20% mais caro no ano passado.

A família de Marcelo precisou se adaptar. “Vendemos o segundo carro em julho e começamos a utilizar mais transporte público”, diz. O carro que restou é usado só nos fins de semana e, ainda assim, a família gasta mais de R$ 600 por mês com combustível. A filha Ana Luísa Ramos, 19 anos, operadora de telemarketing, compromete R$ 400 mensais nas idas e vindas do trabalho com as tarifas de transporte público, que também subiram.

Para conter gastos, os Ramos abriram mão de coisas como Wi-Fi, tevê a cabo e telefone fixo. “Com certeza, não somos mais os mesmos. Não temos tanto conforto financeiro e mordomia”, avalia Marcelo. A esposa, Ludmila Ramos, 38, promotora de vendas, deixou de lado o cartão de crédito. “Fazíamos compras parceladas, e começamos a perceber que estávamos perdendo o controle. Decidimos adquirir o hábito de pagar à vista”, explica.

A filha mais nova do casal, Maria Fernanda, 4 anos, estuda em escola particular. Pela primeira vez, a família decidiu negociar desconto com o colégio. “Conseguimos 15% de abatimento.”  Os serviços da empregada doméstica foram dispensados. “Desde o início do ano passado, temos somente uma diarista”, ressalta Ludmila.

 

Peso maior

Plano de saúde também foi algo que pesou no bolso dos Ramos. Apesar de terem passado sufoco, hoje todos possuem o serviço, mas reclamam do valor. “É caro, mas necessário, então abrimos mão de outros itens, para manter o essencial”, completa Ludmila. Marcelo tem medo do futuro e não acredita em um 2016 mais tranquilo. “Queria oferecer as melhores escolas e faculdades para minhas filhas, mas não vou dar conta de pagar tão caro”, lamenta.

Se a classe média precisa mudar de hábitos para se adaptar, para os mais desfavorecidos, a situação é ainda mais complicada. As famílias de baixa renda sentem um peso maior com a inflação acima da média porque as alternativas para fugir dos preços altos são limitadas. Mesmo assim, deixar de comprar certos alimentos passou a fazer parte da apertada rotina.

A costureira Maria Lima, 62, é casada com o aposentado Edmilson Ferreira, 73. Vivem na mesma casa há mais de 40 anos, na companhia de quatro filhas, três netos e a mãe de Maria. “Eu gosto de ter a casa cheia e, há três anos, isso não era problema. Mas, hoje, está difícil até dar uma boa alimentação para a família”, afirma. Ela ainda trabalha por necessidade. “Estou com problemas no braço e não vou ao médico pois não posso imobilizá-lo. Se eu não trabalhar, ficará pior para todos”, destaca.

O marido é aposentado e recebe um salário mínimo. Ele estima que a renda de toda a família alcance R$ 1,7 mil. “Para 10 pessoas, é quase nada”, calcula. Além do mais, Maria cuida da mãe idosa, que está doente. “Eu gasto R$ 800 por mês só com medicação. Até o começo do ano passado, o gasto era de R$ 400 no máximo”, emenda a esposa de Edmilson.

Maria define as dificuldades de viver no Brasil da inflação de dois dígitos como “a luta de todos os dias”. Entre as medidas para se adaptar, junta água da chuva para lavar roupas e corta despesas.

“Não imaginava que chegaríamos a tanto”, lamenta. “As coisas só pioram. Não tenho esperança de dias melhores, só consigo ter fé para pedir a Deus que me dê forças.”

 

Só o básico

A costureira Maria Lima também dribla a inflação cortando alimentos no supermercado. As contas de água, luz e telefone pesam muito no bolso da família, mas são serviços essenciais. “Gastamos em média R$ 700 com todos esses itens”, diz Maria. No fim do mês, a costureira usa o que restou do dinheiro para alimentação. “Não compro quase nada no mercado. Só o básico para sobreviver”, reclama.

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Impasse político agrava o quadro

A crise política tem sua parcela de culpa na carestia. Para André Braz, economista da Fundação Getulio Vargas (FGV), a paralisia nas decisões de governo aumentou a desconfiança no país. “Os agentes econômicos  não acreditam mais que o Brasil terá capacidade de cumprir seus compromissos. Isso gera evasão de divisas e desvalorização cambial. O dólar alto também pressiona a inflação, por conta de produtos, componentes e matéria-prima importados”, assinala.

Para o especialista, o principal instrumento para reduzir o custo de vida é a taxa de juros. “Mas a Selic não consegue conter essa inflação, porque ela não é mais de demanda. Com o desemprego em alta, não é o consumo desenfreado que está inflando preços. É a desconfiança, o dólar e os preços administrados”, alerta.

O Banco Central, que deveria reforçar o compromisso de combate à inflação para ancorar as expectativas e brecar a inflação inercial (quando o índice atual é da inflação passada mais a perspectiva futura), fez exatamente o contrário na última semana. O BC deixou o mercado ainda mais confuso sobre a condução da política monetária, ao manter a taxa básica em 14,25% ao ano depois de, seguidas vezes, ter indicado que iria aumentá-la.

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Descontrole nos gastos

Alheio ao drama dos brasileiros, o governo impulsiona o aumento da inflação. Para Adriano Gomes, sócio-diretor da Méthode Consultoria e professor de Administração da ESPM, a inflação chegou aonde está por conta do rombo nas contas públicas. “O governo não controla seus gastos. Como acumula enorme deficit primário, não reduz a dívida e coloca títulos públicos no mercado a taxas de juros cada vez mais altas. Quem está tomando dinheiro lá na ponta para produzir paga mais caro e acaba embutindo isso no preço do que vende”, observa.

O economista da Fundação Getulio Vargas (FGV) André Braz explica que um conjunto de fatores contribuiu para a elevação da carestia nos últimos anos. “Os preços administrados, como de energia elétrica e de combustíveis, ficaram represados muito tempo. Em 2015, houve reajuste de mais de 50% no caso das tarifas da conta de luz. Ela encarece vários serviços e produtos em efeito cascata. Tudo que é refrigerado, por exemplo”, alerta.

O país também passou por uma crise hídrica. “A falta de água obrigou ao uso de fontes de energia mais caras, e também provocou o aumento de preços nos alimentos in natura. O reajuste dos combustíveis pressiona o custo de vida, porque aumenta os fretes”, destaca Braz.

Na opinião de Paulo Eduardo Nogueira Gomes, da Azimut Brasil Wealth Management, o congelamento das tarifas de energia e combustíveis, para segurar artificialmente a inflação, e a posterior correção súbita da defasagem foram os principais impulsos para a elevação da carestia em 2015. “Este ano, os reajustes da energia não devem ser tão altos. Mas a inflação ficou resistente.”