O globo, n. 30.146, 19/02/2016. País, p. 3

Papa admite contraceptivos

Francisco diz que usar métodos em regiões afetadas pelo vírus zika não é ‘ mal absoluto’

“O aborto não é uma questão qualquer, é um crime. Evitar uma gravidez não é um mal absoluto”
Papa Francisco

Em meio à emergência mundial decretada pela Organização Mundial de Saúde ( OMS) por causa da zika, o Papa Francisco admitiu que o uso de métodos contraceptivos, prática condenada pela Igreja desde 1968, “não é um mal absoluto”. O pontífice reafirmou, porém, que o aborto, para a Igreja, é crime. Teólogos viram na declaração um indício de que o uso de anticoncepcionais possa ser revisto pelo Vaticano, mesmo com a resistência de grupos conservadores. - RIO E BRASÍLIA- O Papa Francisco indicou que a Igreja Católica poderá flexibilizar as restrições ao uso de métodos contraceptivos em regiões afetadas pela epidemia de zika. Pesquisadores estudam a relação entre a incidência do vírus e o aumento dos casos de bebês com microcefalia, uma má formação do cérebro que provoca deficiências neurológicas.

ALESSANDRO DI MEO/ REUTERSMudança de rumo. Papa Francisco conversa com jornalistas durante voo: pontífice abriu a possibilidade do uso de métodos contraceptivos em regiões afetadas pela epidemia de zika

— Evitar a gravidez não é um mal absoluto — afirmou o pontífice, em conversa com jornalistas no avião que os levava do México para a Itália.

Para endossar a posição, o Papa lembrou o Papa Paulo VI, que abriu exceção para o uso de contraceptivos para freiras que viviam em regiões da África com muitos casos de estupro.

A condenação de métodos como preservativos e a as pílulas anticoncepcionais foi exposta pela Igreja em 1968, em uma encíclica assinada pelo mesmo Papa Paulo VI. “É ainda de recear que o homem, habituando- se ao uso das práticas anticoncepcionais, acabe por perder o respeito pela mulher e, sem se preocupar mais com o equilíbrio físico e psicológico dela, chegue a considerála como simples instrumento de prazer egoísta e não mais como a sua companheira, respeitada e amada”, diz um dos trechos do documento. “Considerem, antes de mais, o caminho amplo e fácil que tais métodos abririam à infidelidade conjugal e à degradação da moralidade”, escreveu o Papa.

A encíclica também manifesta a posição da Igreja contra o aborto, ponto que foi reiterado pelo Papa Francisco:

— O aborto não é um problema teológico. Matar uma pessoa para salvar outra é uma maldade humana, não um mal religioso. É matar uma pessoa para salvar outra. É o que a máfia faz.

O Papa pediu ainda que as pesquisas sobre a vacina capaz de impedir o contágio do vírus zika avancem rapidamente.

— Peço aos médicos que façam de tudo para descobrir as vacinas contra esses mosquitos. Que se trabalhe para isso — reforçou. MOVIMENTO SUTIL As frases do Para tiveram repercussão. Para o frei Luiz Carlos Susin, doutor em teologia e professor da PUC- RS, o posicionamento vai provocar críticas de segmentos mais conservadores da Igreja Católica. Ele, no entanto, aprova a sinalização do Papa.

— Nesse caso, em que se está dando atenção a questões mais relevantes, está certo. É mais importante ter cuidados do que ficar fazendo distinção entre métodos ( contraceptivos) naturais e artificiais — afirmou.

O teólogo acredita que os pontos citados pela encíclica foram tratados de forma muito rigorosa desde a publicação, nos anos 1960, e a declaração do Papa Francisco pode representar o início de uma mudança de rumo.

— A afirmação não é um marco, no sentido de que o ensinamento era de um jeito e agora vai ser diferente. É uma linha sutil de mudança. Eu, pessoalmente, acho que poderia ser mais franco, dizer que de fato precisa mudar. Mas nenhum Papa anterior falou em qualquer hipótese de aplicar método contraceptivo — destacou Susin.

A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil ( CNBB) informou que o portavoz da entidade está viajando e não poderia se manifestar. Em comunicado divulgado no início do mês, a CNBB criticou a defesa do aborto para os casos diagnosticados de microcefalia. Já a Organização das Nações Unidas ( ONU) pediu aos países atingidos pelo vírus que permitam o aborto e facilitem o acesso de mulheres a métodos contraceptivos.

A organização não governamental ( ONG) Católicas pelo Direito de Decidir, que milita pela descriminalização do aborto, lançou um manifesto em defesa do direito da mulher interromper a gestação se for contaminada pelo vírus zika. Como o diagnóstico da microcefalia só ocorre por volta do 7 º mês, quando o procedimento se torna inviável, a ONG defende que as grávidas diagnosticadas com zika possam fazer o aborto.

O movimento se uniu ao grupo de especialistas que planeja apresentar uma ação no STF para que, entre outros serviços, o Estado garanta o acesso ao aborto no caso de zika. O pedido que será levado à Corte terá foco também no difícil acesso a políticas de planejamento familiar e na necessidade de melhoria dos serviços voltados para a saúde feminina.

Para Rosângela Talib, uma das coordenadoras da ONG, as mulheres não podem “pagar a conta” do descaso do Estado:

— Elas terão de arcar com o ônus da falta de saneamento, de coleta de lixo, de exames, de remédios? É uma questão de saúde mental, psicológica. Defendemos também a obrigação do Estado de dar toda a assistência às mulheres que quiserem levar a gravidez adiante. ( Com agências internacionais)