O Estado de São Paulo, n. 44.684, 19/02/2016. Política, p. A7

Advogados reagem à decisão do STF

Determinação do Supremo que permite a prisão de réus já em 2.ª instância acirra embate entre defesa e acusação em tempos de Lava Jato

Por: Fausto Macedo

 

A decisão do Supremo Tribunal Federal que autoriza a prisão de réus já em segunda instância judicial - sem aguardar o trânsito final da sentença e o esgotamento de todos os recursos - acirrou um embate histórico entre defesa e acusação.

De um lado, procuradores da República e delegados de Polícia Federal apontam “avanço” no combate à criminalidade. De outro, advogados e juristas veem “retrocesso” e alertam para “danos irreparáveis” no rastro do novo entendimento da Corte máxima.

O juiz federal Sérgio Moro, da Operação Lava Jato, reforçou sua posição a favor da decisão. “Fechou uma janela da impunidade”. Para ele, “não há violação da presunção de inocência já que a prisão opera somente após um julgamento condenatório, no qual todas as provas foram avaliadas, e ainda por um Tribunal de Apelação”.

A decisão do Supremo foi tomada no julgamento de habeas corpus anteontem para um acusado de roubo em São Paulo. Por sete votos a quatro, os ministros concluíram que a prisão do acusado pode ser executada já em nível de segundo grau.

O decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, declarou que a decisão é uma “inflexão conservadora”. “A questão do erro Judiciário lamentavelmente é sempre possível. De qualquer maneira, houve uma inflexão conservadora do Supremo na restrição do postulado constitucional de estado de inocência”, afirmou.

De acordo com o ministro, apesar de a decisão ter sido tomada em um habeas corpus e, portanto, ser restrita ao caso analisado, o STF firmou um “novo paradigma”. Celso de Mello voltou a defender que as penas não podem ser executadas antes do trânsito em julgado da sentença. “Jamais poderemos abdicar, desconsiderar ou transgredir direitos e garantias fundamentais. E a lei de execução penal é claríssima, fiel à Constituição, ao dizer que não se executa no País, no Brasil, nenhuma pena, seja ela privativa de liberdade, seja ela restritiva de direitos, sem que tenha havido previamente o trânsito em julgado da condenação penal”.

Já o ministro Gilmar Mendes expressou, dessa vez, voto favorável. Ele disse à Rádio Estadão que o sistema criminal brasileiro é “surreal” e que entendeu ser necessário mudar sua posição - antes ele era contrário ao cumprimento da pena de condenados já em segunda instância. “O Brasil é um País um tanto surreal no que diz respeito ao sistema criminal, prende muita gente provisoriamente e depois quando se trata da condenação definitiva não consegue executar.”

 

Divergência. Fora da Corte Suprema, as opiniões também se dividem. Ordem dos Advogados do Brasil reagiu enfaticamente contra a decisão e alertou, em nota, para os “danos irreparáveis” no rastro da decisão do Supremo. A entidade alega que o princípio constitucional não permite a prisão enquanto houver direito a recurso. “A execução provisória da pena é preocupante em razão do postulado constitucional e da natureza da decisão executada, uma vez que eventualmente reformada, produzirá danos irreparáveis na vida das pessoas que forem encarceradas injustamente.”

O criminalista Fábio Tofic Simantob pronunciou que “respeita a decisão do Supremo”, mas considera que ela “invade a competência do constituinte originário, que estabelece como cláusula pétrea a presunção de inocência até o trânsito em julgado”. “Montesquieu (filósofo francês que viveu de 1689 a 1755) deve ter ficado aborrecido.”

Para o criminalista e ex-presidente nacional da OAB José Roberto Batochio, a decisão do Supremo atenta contra “as liberdades constitucionais”. “A surpreendente decisão do STF implica ruptura da ordem constitucional. Agora, uma outra ordem constitucional foi instituída, não positivada em texto que emana da soberania da Nação, expressa em assembleia nacional constituinte, mas nascida da idiossincrasia da maioria dos membros que compõe a Corte Suprema”, comentou. O criminalista Pierpaolo Bottini disse que o País corre o risco de ver suas prisões superlotadas.

 

Consonância. Na outra ponta, os delegados de Polícia Federal consideram que a decisão representa “um importante passo para o fim da impunidade em nosso País”.

“Recursos protelatórios para o STJ (Superior Tribunal de Justiça) ou STF não terão mais o efeito de impedir a aplicação da lei”, afirmou o delegado Carlos Eduardo Miguel Sobral, presidente da Associação Nacional dos Delegados da PF.

O presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), Antônio César Bochenek, disse que a decisão “marca um avanço no processo penal brasileiro”. Os procuradores da República comemoram. “Garantirá maior eficiência e celeridade à prestação jurisdicional”, destacou José Robalinho Cavalcanti, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República./COLABOROU BEATRIZ BULLA

 

Posições

“Houve uma inflexão conservadora do Supremo na restrição do postulado constitucional de estado de inocência”

Celso de Mello

MINISTRO DECANO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

 

“A medida valoriza a decisão dos magistrados de 1.º e 2.º graus. Em última análise, será fortalecida a Justiça brasileira”

Antônio César Bochenek

PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS (AJUFE)

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DEBATE - O senhor concorda com a decisão do Supremo?

 

O senhor concorda com a decisão do Supremo?

CARLOS VELLOSO

SIM

Em artigo publicado pelo Estado, anotei que a execução da condenação em segundo grau é a regra em países de boa prática democrática. No Brasil, essa era a regra, até quando o Supremo Tribunal reformulou a jurisprudência. Votei, no caso, em 2005, mas o julgamento foi concluído em 2006 ou 2009. Fiquei vencido. Já não estava na Casa.

A execução da sentença condenatória, após o julgamento em 2.ª instância, é razoável. É que os recursos que podem ser apresentados a partir daí não examinam a prova, não examinam a justiça da decisão. A presunção de inocência estaria, no mínimo, fortemente abalada, certo que se trata de presunção e não de certeza.

Dispositivos constitucionais não se interpretam isoladamente e sim no seu conjunto. O que a Constituição garante é o duplo grau de jurisdição, ou o contraditório e a ampla defesa, com os recursos assegurados na lei processual. Esta dispõe que os recursos especial e extraordinário não têm efeito suspensivo.

Interpostos os recursos especial e extraordinário, ocorrendo os pressupostos da cautelar, será caso de sua concessão, para o fim de ser concedido efeito suspensivo ao recurso. Ao exigir- se o trânsito em julgado para o início da execução, estar-se-ia fazendo da exceção a regra.

Certo é que o entendimento no sentido de se aguardar o trânsito em julgado contribui para a impunidade. O número exagerado de recursos pode levar à prescrição da pena, em detrimento da sociedade e da credibilidade do Judiciário.

 

ADVOGADO E EX-PRESIDENTE DO STF E DO TSE

 

 

O senhor concorda com a decisão do Supremo?

LUIZ FLÁVIO BORGES D’URSO

NÃO

A Constituição Federal deve estar acima de tudo. A recente decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida em 17 de fevereiro, que passa a permitir que depois de decisões de segundo grau confirmatórias de condenações criminais a pena de prisão já seja executada, representa um retrocesso e um desastre humanitário.

O STF tem o dever de garantir a observância da Constituição Federal, e com essa decisão, o que vemos é a negação do princípio da presunção de inocência, esculpido no inciso LVII do artigo 5.º, que estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Exatamente nos momentos de crise é que mais precisamos da nossa Constituição Federal, a garantir nosso sistema e nossas instituições, sem se admitir flexibilizações de seus conceitos duramente conquistados, a que pretexto for.

Portanto, essa decisão do STF, além de ser equivocada, revela-se, repito, um desastre humanitário, pois se está suprimindo garantias constitucionais do cidadão,no tocante a sua defesa, além dofato de nosso sistema prisional brasileiro encontrar-se falido.

Enquanto o mundo busca caminhos para punir sem encarcerar, essa decisão privilegia o encarceramento antecipado, na contramão da evolução do direito penal mundial.

Esperamos que esse entendimento, que deu suporte a essa triste decisão, não se cristalize e o STF, guardião maior de nossa Carta Magna, cumpra seu dever, guardando nossa Constituição Federal, se necessário, contra tudo e contra todos.

 

CRIMINALISTA