O globo, n. 30.147, 20/02/2016. País, p. 6
A Brasif soltou ontem um comunicado, no qual diz que Fernando Henrique não teve participação na contratação de Mirian Dutra e nem fez “qualquer depósito” na empresa. O expresidente também emitiu nota, acusando uso político do caso dos pagamentos feitos a Mirian Dutra, no exterior, que considera uma “questão pessoal”.
Em visita ao Rio para acompanhar o esquema de segurança dos Jogos Olímpicos de 2016, o ministro da Justiça disse que o suposto envio de recursos para o exterior pelo ex-presidente deve ser avaliado por um estudo técnico e jurídico, com o objetivo de determinar eventual ocorrência de delito.
— Obviamente, em havendo indícios de delitos puníveis de competência federal, seguramente a Polícia Federal fará investigação por meio de inquérito policial. Não vale apenas para o Fernando Henrique Cardoso, mas para todos os brasileiros e todas as brasileiras. Aquilo que for de competência da Polícia Federal, se houver indícios de prática criminosa, tudo será absolutamente investigado. Não é situação diferenciada, atípica, daquelas que ocorrem — disse o ministro.
FH DIZ QUE SÓ USOU BANCOS
Cardozo disse que a apuração, se cabível, será feita seguindo o princípio da impessoalidade:
— Volta e meia, sou acusado de não controlar a PF ou de instrumentalizá-la contra os adversários. Pouco importa se são pessoas vinculadas à base governista, aos partidos que mantêm boa relação com o governo, ou se são oposicionistas, nós fazemos o mesmo procedimento, sem a busca de factoides, sem a busca de exposição de imagem.
O ministro, no entanto, evitou opiniar sobre as acusações a FH.
Em seu comunicado, a Brasif negou que Fernando Henrique tenha participado da contratação da jornalista Mirian Dutra para realizar pesquisas de preços em lojas e free shops na Europa, trabalho que a jornalista disse jamais ter exercido. O empresário Jonas Barcellos, dono da Brasif, confirmou o acerto com Mirian, quando foi procurado pela “Folha de S.Paulo”. “Tem alguma coisa mesmo sim. Eu só não sei se era contrato”, disse ele.
Na nota de ontem, a Brasif diz que a “Eurotrade Ltd., plataforma logística internacional das operações da Brasil Duty Free Shop Ltda., contratou, em dezembro de 2002, a jornalista Mirian Dutra para realizar pesquisas sobre os preços em lojas e free shops na Europa”, indicada pelo jornalista Fernando Lemos, cunhado dela. “O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não teve qualquer participação nessa contratação, tampouco fez qualquer depósito na Eurotrade ou em outra empresa da Brasil”, acrescenta o comunicado, ressaltando que a Eurotrade e a Brasil Duty Free Shop foram vendidas em 2006.
Após o comunicado da Brasif, Fernando Henrique divulgou nota em que acusa uso político do caso dos pagamentos feitos a Mirian Dutra, no exterior.
O tucano voltou a dizer que não cometeu nenhuma ilegalidade ao enviar recursos para fora do país para custear o filho de Mirian, Tomás, que ele acreditou ser dele até alguns anos atrás.
“O presidente Fernando Henrique Cardoso reafirma que nunca utilizou qualquer empresa, exceto bancos, para a remessa de recursos a pessoas no exterior. Todas as remessas internacionais que realizou obedeceram estritamente a lei, foram feitas a partir de contas bancárias declaradas e com recursos próprios resultantes de seu trabalho. Não tem fundamento, portanto, qualquer ilação de ilegalidade. O presidente lamenta o uso político de uma questão pessoal”, diz a nota.
À “Folha de S. Paulo”, o ex-presidente negara ter utilizado empresa para enviar dinheiro a Mirian ou a Tomás. No dia seguinte, o tucano disse que com referência à Brasif, tratava-se “de um contrato feito há mais de 13 anos”, sobre o qual não tinha condições de se manifestar “enquanto a referida empresa não fizer os esclarecimentos que considerar necessários”. Ontem, após manifestação da Brasif, reafirmou o que dissera no primeiro momento.
O presidente do PSDB, Aécio Neves, criticou a declaração de Cardozo sobre a possibilidade de a PF investigar a denúncia feita pela jornalista Mirian Dutra:
— A nota da Brasif, que esclarece as acusações que começaram a ser feitas ao presidente Fernando Henrique Cardoso, mostra que foi precipitada a declaração do ministro da Justiça. Ele, sempre que é levado a escolher agir com a isenção de um ministro ou como advogado do PT, acaba sempre optando pela segunda condição. ( Colaborou Maria Lima)
Foi Mirian que pediu à TV Globo para trabalhar no exterior. Não foi exilada, escolheu
se exilar
De 1995 para cá, qualquer jornalista ligado à cobertura de fatos políticos nacionais ouviu mil histórias sobre o suposto filho do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso com a jornalista Mirian Dutra.
Eu ouvi e continuo ouvindo até hoje. Então por que desde lá poucas coisas foram publicadas a respeito?
Primeiro porque Mirian sempre negou que o filho fosse de Fernando Henrique. Foi ela que segredou a um jornalista que o filho era de um biólogo —e a “Veja” publicou.
Segundo porque Fernando Henrique sempre negou que fosse o pai. A um jornalista da “Veja” que lhe perguntou se era o pai, ele certa vez respondeu sorrindo: “Não, deve ser o Serra”.
Em abril de 2000, a revista “Caros Amigos” publicou extensa reportagem sob o título “Por que a Imprensa esconde o filho de oito anos de FHC com a repórter da Globo?”.
Onze anos depois, dois exames de DNA comprovaram que o filho não era dele, embora FHC, por excesso de vaidade, acreditasse que era. Tanto que o reconheceu em cartório.
A imprensa poderia ter publicado, sim, que os dois namoraram durante seis anos. Mas a imprensa brasileira sempre evitou falar da vida privada de homens públicos.
O “Jornal do Brasil”, em 1989, descobriu que Lula tinha uma filha de um relacionamento passado com uma enfermeira. Lula confirmou a notícia. A mãe da menina também. Então o jornal publicou.
Como jornais e revistas publicariam que Orestes Quércia tivera um filho fora do casamento. E Fernando Collor também. Quércia e Collor confirmaram previamente a informação.
Lula foi um namorador emérito. Nem por isso a imprensa correu atrás dos seus casos. E nunca contou, por exemplo, por que ele fora tão mal no segundo debate presidencial com Collor em 1989.
Foi mal porque estava cansado. Foi mal porque sua família recebera naquele dia telefonemas anônimos com ameaças contra ele. E foi mal porque temeu que Collor tivesse cópia da nota fiscal de um equipamento de som 3 em 1 que ele dera de presente a uma amiga de Brasília.
Collor não tinha a nota. Mas sabia da existência de fotografias de Lula com a amiga, na companhia de Bernardo Cabral e de uma jornalista. Os dois casais eram amigos fraternos. Costumavam se reunir.
Cabral virou ministro da Justiça de Collor. Foi demitido quando Collor descobriu que, embora casado, ele namorava Zélia Cardoso, sua ministra da Fazenda.
Por que a imprensa tratou do romance de Cabral com Zélia? Porque eles compareceram a uma festa em Brasília e dançaram agarradinhos o bolero “Besame Mucho”.
Anos mais tarde, Zélia, já fora do governo, ditou suas memórias do romance com Cabral para publicação em livro. Cabral reconciliouse com a mulher, com quem vive bem até hoje.
Nunca foi segredo em Brasília que o senador Renan Calheiros namorava a jornalista Mônica Veloso, mãe de uma filha dele.
A imprensa só publicou algo a respeito porque Mônica revelou que a pensão devida por Renan à ela era paga por um lobista de empreiteira.
Uma questão pessoal ganhou o status de escândalo político. Mônica posou nua para a Playboy.
Por não se imiscuir na vida privada dos poderosos, a imprensa francesa calou-se sobre uma filha de François Miterrand durante os 14 anos em que ele presidiu a França.
A norte-americana sempre escancarou a vida privada dos políticos por entender que o distinto público tem direito de conhecer melhor seus representantes. Eu também penso assim.
De volta ao caso de FHC com Mirian Dutra: ao contrário do que se publica, ela não foi morar em Portugal porque a TV Globo transferiu- a para o exterior com o propósito de poupar FHC de constrangimentos políticos e pessoais. Na época, dona Ruth, mulher dele, já sabia do namoro e do suposto filho.
Foi Mirian que, um dia, entrou na sala do então diretor-geral da Globo em Brasília e pediu para ir trabalhar em Londres. Ela já era mãe. Queria viver uma nova experiência profissional, segundo disse.
“Você sabe falar inglês?”, perguntou o diretor. “Não, mas em seis meses eu aprendo”, ela respondeu O diretor comentou: “Não aprende. Você teria de chegar lá falando inglês muito bem. Você não quer ir para Portugal?” Mirian aceitou na hora.
Portugal como destino de Mirian surgiu porque o diretor voltara da inauguração em Lisboa da primeira estação de televisão portuguesa de caráter privado, a Sociedade Independente de Comunicação (SIC).
A Globo é sócia da SIC. Na época, sairia barato alocar na SIC um correspondente da Globo, que só contava com os escritórios em Londres e Nova Iorque.
Assim, Mirian foi parar em Lisboa. Não foi exilada, como sugere que foi. Escolheu se exilar.
Ela diz que pensou em voltar ao Brasil, mas que Antonio Carlos Magalhães e seu filho Luiz Eduardo a aconselharam a ficar por lá. Os dois estão mortos, não podem confirmar nem negar. De todo modo, ela não voltou porque não quis.
Mirian reclama, hoje, de pouco ter trabalhado quando de Lisboa foi para Londres e, de lá, para Barcelona. Ora, então por que não voltou? Ou por que continuou recebendo salário da Globo sem pegar no pesado?
Brasileiros que conviveram com ela em Barcelona contam que Mirian frequentava restaurantes caros da cidade e vivia com certo luxo. Quando a encontrei uma vez por lá, não achei que vivesse com luxo. Com conforto, sim.
Além do salário da Globo, Mirian recebia uma mesada em dólar paga por FHC, e dinheiro que sua irmã, Margrit Dutra Schmidt, e o marido, o jornalista Fernando Lemos, lhe enviavam regularmente.
Margrit, ontem, estava de férias na República Dominicana. Ela é funcionária do Senado lotada no gabinete do senador José Serra. Lemos morreu.
Enquanto foi cunhado de Mirian, ele pediu dinheiro a empresas e políticos, alegando que a ajuda era necessária para que Mirian pudesse se manter no exterior. Funcionou como uma espécie de empresário dela.
Mais de uma vez, em telefonemas para amigos de Brasília, Mirian queixou-se da irmã e do cunhado. Acusou-os de reter parte do dinheiro que arrecadavam e que deveria ser dela.
Mirian refere-se a Lemos como lobista, embora tenha assinado contrato com uma empresa dele para receber salário sem dar em troca um só dia de trabalho, como ela mesma reconhece.
Se quiser, Mirian ainda fará novas revelações sobre seu namoro com FHC, que ontem conversou por telefone com Tomás, filho dela, a quem presenteou há alguns anos com um apartamento em Barcelona.
Quanto a FHC, ele deve melhores explicações sobre como remetia dinheiro para Mirian.
Ele diz que o dinheiro era seu, que estava depositado em bancos daqui, dos Estados Unidos e da Espanha, e que o transferia para Mirian mediante ordens bancárias. Tudo, segundo ele, legalmente.
Mirian oferece outra versão. Diz que ele lhe repassava a mesada de 3 mil dólares mediante um contrato dela fictício com a empresa Brasif S.A.
Em nota oficial, distribuída ontem, a Brasif declarou que tinha um contrato com Mirian de prestação de serviços. E que FHC nada teve a ver com isso. Quem teve foi Lemos. Salvo o surgimento de novos fatos, é isso. O resto não passa de exploração política para tirar Lula e o PT das manchetes.