Título: Lembranças, o maior dos estragos
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 02/10/2011, Brasil, p. 12
Psicólogos analisam como vivem vítimas de enchentes e desmoronamentos no país. As recordações da tragédia marcam o dia a dia de muitos que tentam seguir a vida
Depois que a manutenção da vida deixa de ser a prioridade, sobreviventes de desastres naturais começam a contabilizar as perdas. Móveis, casas, carros e equipamentos que garantiam o sustento da família são apenas a parte mais visível e, no fundo, menos importante. O estrago verdadeiro das tragédias brasileiras foge ao alcance de cifras, balanços ou relatórios. É imensurável. Vem das lembranças de horror, da tentativa fracassada de salvar o filho ou a mulher, da inexistência súbita de 10 ou mais parentes, da perda dos laços sociais dentro de abrigos superlotados, do esquecimento posterior à comoção inicial. "O abandono se transforma em um novo desastre porque revitimiza as pessoas numa dimensão incalculável", afirma Clara Goldman, vice-presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP).
Sua afirmação vem de estudo inédito, encomendado pelo CFP ao Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (Neped) da Universidade Federal de São Carlos, que será divulgado em novembro. Sob o título Abandonados nos desastres: uma análise sociológica de dimensões objetivas e simbólicas de afetação de grupos sociais desabrigados e desalojados, a pesquisa revelou como vivem atingidos por enchentes e desmoronamentos em seis municípios de três regiões do país. Apesar de as análises se referirem a Ilhota (SC), União dos Palmares (AL), Barreiros (PE), Jaboatão dos Guararapes (PE), Petrópolis (RJ) e Teresópolis (RJ), o fiasco emocional detectado pode se estender aos milhares de brasileiros castigados pelas tragédias, muitas vezes anunciadas.
Para Tatiana Reichert, catarinense com ascendência alemã, não foi. Nunca nos seus então 34 anos, a mulher imaginou que a cidade pacata onde nasceu, hoje com cerca de 12,3 mil habitantes, passaria por tamanha tragédia. Mas, em 23 de novembro de 2008, Ilhota sucumbiu às fortes chuvas, que ocasionaram a cheia do Rio Itajaí-Açú, divisor da área urbana e rural do município. Foi na porção de Ilhota em que se cultiva arroz, banana e hortaliças que a destruição chegou. Tatiana não se esquece dos estrondos que ouvia durante a madrugada daquele domingo sem energia elétrica. À luz de velas, ela e o marido, Rosmael, ambos agricultores, mantiveram-se na cozinha de casa. Tatiana não desgrudou da única filha, de um ano na época, Maria Izabel, que dormia em seu colo. "Eu pensei: se a gente morrer, morremos juntas", lembra.
Tatiana, Rosmael e Ana Izabel salvaram-se. A casa resistiu aos desmoronamentos que assolaram a parte rural de Ilhota. A 1,5km dali, porém, a moradia confortável dos pais, construída havia dois anos, depois de uma vida de economias, desfazia-se como se fosse de areia. Lama, pedras, postes, carros, bichos e gente morta adiavam a chegada de Tatiana ao local. Ela demorou mais de um dia para percorrer o caminho habitualmente feito em 20 ou 30 minutos a pé. Não havia comunicação na região. Quando chegou, a irmã já estava sendo velada. A mãe, Helena, desaparecida. Trinta e três dias depois, o saldo final foi de 14 familiares mortos, incluindo Helena, cujo corpo acabara sendo encontrado.
O abandono se transforma em um novo desastre porque revitimiza as pessoas numa dimensão incalculável" Clara Goldman, vice-presidente do Conselho Federal de Psicologia