O Estado de São Paulo, n. 44.667, 02/02/2016. Metrópole, p. A11

OMS declara microcefalia em regiões com zika emergência internacional

Saúde. Medida foi adotada para estimular pesquisas sobre a ligação entre a má-formação e outras doenças neurológicas; houve ainda apelo por uma ação agressiva contra o ‘Aedes’, mas não foi adotada nenhuma restrição a viagens, nem mesmo para grávidas

Por: Jamil Chade

 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a microcefalia e as desordens neurológicas em áreas com a presença do zika vírus emergência internacional e vai lançar se em uma mobilização de verbas milionárias para acelerar pesquisas que possam esclarecer o motivo da explosão de casos da má-formação no Brasil. Enquanto isso, nenhuma restrição de viagem ou comercial deve ser adotada.

Um fundo será criado para financiar pesquisas e a OMS apelou por uma “ação agressiva” paralutar contra o Aedes aegypti no mundo.

Duramente criticada por não ter agido rapidamente para evitar a proliferação do ebola, a diretora da OMS,Margaret Chan, convocou os principais cientistas do mundo para avaliar ontem a situação do zika vírus.Entre os especialistas estava o brasileiro Pedro Vasconcelos, do Instituto Evandro Chagas. “Declaro que os recentes casos de microcefalia e outras complicações neurológicas reportados no Brasil, após casos similares na Polinésia Francesa em 2014,constituem uma emergência de saúde pública internacional”, disse Margaret.

Até hoje, apenas H1N1, pólio e ebola haviam sido declarados como emergências internacionais. “Esses são eventos extraordinários e precisamos reduzir o risco de proliferação”, afirmou.

Diante da falta de comprovações científicas, a decisão dos especialistas foi a de evitar colocar o zika vírus como uma ameaça. O Estado apurou que, com a previsão de 4 milhões de pessoas infectadas apenas nas Américas, a OMS temia que, ao declarar uma emergência internacional pelo vírus, a região fosse tomada por um pânico desnecessário ou sofresse profundos prejuízos econômicos.

“Zika vírus por si só não é a emergência internacional. Clinicamente, ele não é serio.O vírus só seria declarado assim se ficasse provada a relação (com casos de microcefalia)”, disse David Heymann,médico que presidiu a reunião dos cientistas. O diretor  de Emergência da OMS, Bruce Aylward, também confirmou a posição da entidade. “A emergência são os grupos de doenças (neurológicas).” Mesmo sem as comprovações científicas, a OMS optou por agir. “As suspeitas são fortes (de ligação) entre o vírus e a microcefalia,ainda que não provadas cientificamente. Precisamos coordenar esforços internacionais”, declarou Margaret, lembrando ainda a falta de vacina e tratamento. “Isso é tão sé- rio que temos de atuar com medidas preventivas. Imagine: se no futuro essa relação ficar provada, vão nos acusar de não ter atuado, pois o mosquito está em todas as partes”, afirmou. “Essa é uma ameaça para o restante da população mundial.” “Precisamos de pesquisas.

Mas,diante dos casos de má-formação serem tão graves,decidimos declarar uma emergência”, completou Heymann. A OMS ainda recomendou ontem prioridade na pesquisa para encontrar uma vacina, assim como terapias e diagnósticos.O Estado apurou que um dos principais motivos do alerta emitido ontem foi o de mobilizar o mundo científico e político para acelerar os estudos na área.

 

Ações. As medidas adotadas ontem incluem as recomendações aos governos para que “o monitoramento de microcefalia e dos distúrbios neurológicos seja padronizado e fortalecido, em especial nas áreas conhecidas como locais de transmissão do zika vírus”. A OMS também exigiu que os governos preparem seus serviços de saúde para “um potencial aumento de casos neurológicos”.

A OMS, porém, não fez recomendações para que viagens sejam evitadas ao Brasil ou a outros lugares afetados. “Não deve haver restrição de viagens ou comércio, nem para mulheres grávidas”, disse Margaret. Uma das preocupações da entidade era criar um padrão global para dar uma resposta ao problema, evitando que governos adotem medidas extremas, como a de sugerir a seus cidadãos evitarem os Jogos Olímpicos do Rio ou qualquer cidade brasileira.

A entidade sugere, porém, que os viajantes sejam informados sobre os potenciais riscos e tomem medidas “apropriadas para reduzir a possibilidade de exposição às picadas dos mosquitos”.A OMS recomenda que aviões sejam desinfetados.

 

ALERTA

 

● A OMS criou o conceito de Emergência de Saúde Pública de Preocupação Internacional (Pheic, na sigla em inglês) em 2007 e desde então só o tinha decretado três vezes

 

H1N1

Abril de 2009

A primeira vez que a OMS usou a denominação foi durante o surto de H1N1, que ficou conhecido como gripe suína, ou gripe A. Os casos se espalharam e foi declarada uma pandemia. Todos os continentes registraram mortes.

No Brasil foram mais de 58 mil infectados

 

Pólio

Maio de 2014

O decreto ocorreu após surtos de poliomielite ressurgirem em pelo menos 13 países da Ásia, da África e do Oriente Médio, ameaçando os esforços de quase três décadas para erradicar a doença, que contagia em geral crianças menores de 5 anos

 

Ebola

Agosto de 2014

O rápido avanço do surto de Ebola no oeste africano levou a situação de emergência. Foram registrados 28.638 casos da doença, com 11.316 mortes. A OMS declarou, no início deste ano, o fim do surto após trabalho de combate nos países africanos

 

Microcefalia

Fevereiro de 2016

Com a suspeita de ligação entre casos de zika e registro de microcefalia em bebês, a OMS decretou a emergência mundial.

Países do Caribe e da América Latina são os mais afetados, com destaque para o Brasil, que registrou mais de 3 mil casos da má-formação desde maio do ano passado

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Brasil foi o centro da reunião, que mostrou uma OMS sob pressão

Por: Jamil Chade

 

No epicentro da crise, o Brasil. Em quatro horas de debate, ontem, entre cientistas e membros de diferentes governos, foi a situação no País que atraiu a atenção de todos e determinou a recomendação global. O Estado foi o único meio de comunicação que teve acesso a trechos do debate, cercado por incógnitas e temores de especialistas de serem acusados no futuro de não terem agido. Nas conversas, a proliferação dos casos pelo País, a necessidade de uma resposta e um alerta geral para mobilizar a população foram decisivos no anúncio feito pela OMS.

Em um primeiro momento, governos de todo o mundo foram chamados a participar da teleconferência para responder às perguntas dos cientistas. No centro do debate e da proliferação dos casos, o Brasil foi o grande alvo dos questionamentos entre 18 especialistas de Reino Unido, Índia, EUA, Gana, Paquistão e Cingapura.

Um dos pontos centrais levantados pelos cientistas e representantes de governos se referia à relação entre a microcefalia e o zika vírus. Alguns cientistas queriam saber se existiam sinais de contágio por relações sexuais, enquanto outros questionavam sobre o número de casos realmente registrados no Brasil. Em um momento, o coordenador do grupo de emergências, o médico inglês da London School of Hygiene and Tropical Medicine, David Heymann, ironizou: “O Brasil parece ser mesmo o mais popular dessa reunião.” Em outro trecho, os cientistas e responsáveis internacionais mostraram preocupação quanto à proliferação da doença durante a Olimpíada. “O que é que está sendo feito no Brasil?” Numa resposta, o representante do governo que falava de Brasília garantiu que as autoridades “enviaram todos os dados ao Comitê Olímpico Internacional”.

Duas horas depois, os governos foram desconectados da reunião virtual e apenas os cientistas puderam participar, justamente para garantir a independência nas decisões tomadas. Ao avaliar as medidas sobre a mesa, os cientistas não escondiam a hesitação diante da falta de comprova- ções da relação do vírus com microcefalia.

“Se não fizermos nada e, em alguns meses descobrimos que o zika causa a microcefalia, vão nos acusar de negligência”, disse um membro da alta direção da entidade. O Estado apurou que já existia pressão sobre a OMS para que ela convocasse a reunião em dezembro. Mas a entidade entendeu que não teria elementos científicos.

Agora, escolheu um caminho diplomático.

A OMS também sofria pressões internas.

Departamentos como o da malária e o da dengue, não declaradas “emergências internacionais”, alertavam a cúpula que iriam oficialmente protestar se o zika, sem provas, fosse declarado emergência.

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Outros países frisaram que só têm casos ‘importados’

Por: Jamil Chade

 

Se o Brasil era alvo de todos os questionamentos na reunião de especialistas e governos feita ontem em Genebra, outros governos preferiram aproveitar a reunião para alertar que os casos em seus territórios eram todos “importados”. Ou seja, não tinham registros autóctones. Uma das representantes dos Estados Unidos, por exemplo, afirmou que todos os casos registrados em território americano eram “de pessoas que estavam em outros lugares e viajaram de volta às cidades americanas”. “Não vemos sinais de que eles tenham sido contaminados no país”, insistiu. / J.C.