O Estado de São Paulo, n. 44.671, 06/02/2016. Metrópole, p. A12

Microcefalia faz ONU defender acesso ao aborto; Brasil manterá veto

 

Fiocruz detecta zika vírus ativo em saliva e urina

Governo ampliará ações no Rio para evitar ameaça à Olimpíada

Dilma e ministros vão encurtar folga de carnaval, às vésperas de mutirão nacional

53 cidades de São Paulo relataram má-formação

 

Na semana em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou emergência de saúde pública internacional por casos de microcefalia em áreas com surto de zika vírus, pela primeira vez um executivo da Organização das Nações Unidas (ONU) veio a público para pedir que os países garantam acesso a serviços de aborto seguro. No Brasil, o ministro da Saúde, Marcelo Castro, voltou a dizer que a legislação proíbe a prática nesses casos e o governo não pretende fomentar essa discussão. O tema deve chegar nos próximos dias ao Supremo Tribunal Federal(STF),por meio de grupos que defendem o aborto.A ideia é que o tribunal avance na liberação,assim como fez no caso de bebês anencéfalos.Mas há polêmica: a própria OMS evita se posicionar e diversos países e o Vaticano cobraram explicações da ONU. Ainda ontem,a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) detectou pela primeira vez a presença do zika ativo em amostras de saliva e urina. Embora os pesquisadores tenham ressaltado que não foi comprovada a transmissão do vírus por esses meios, o ministro Marcelo Castro declarou que essa notícia “é motivo de mais cuidados ainda”. Nos bastidores, foi mais uma notícia ruim para o governo. Incomodado com a possibilidade de danos à imagem internacional, pois o País aparece cada vez mais ligado ao surto, o governo pretende intensificar ações específicas focadas no Rio, de modo a evitar qualquer ameaça à realização dos Jogos Olímpicos. O movimento é preventivo: segundo o Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur), apenas mulheres grávidas, por causa dos casos de microcefalia, têm adiado a vinda turística ou comercial ao País. Haverá ainda ações internas: dia 13, a presidente Dilma Rousseff deve participar pessoalmente do mutirão contra o mosquito. Até agora,33paísese territórios do mundo relataram casos autóctones da doença.O Brasil lidera em registros de microcefalia,maior temor internacional. O boletim mais recente aponta 404 casos confirmados, 17 associados ao zika vírus. Há 3.670 registros em investigação,126 no Estado de São Paulo,onde 53 cidades já registraram casos da má-formação congênita. E outras doenças ligadas ao Aedes aegypti também preocupam: na capital paulista, no início do ano, triplicaram os casos de dengue.

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Nossa lei proíbe’, diz ministro;mudança só seria via Congresso

Igreja e movimento feminista polarizam debate; governo quer evitar polêmica com o aborto

Por: Jamil Chade,Tânia Monteiro e Isadora Peron

 

Em uma declaração sobre o impacto da crise para os direitos das mulheres, o Alto Comissário de Direitos Humanos das Nações Unidas, Zeid Al Hussein, apelou a países afetados pelo vírus que permitam que mulheres tenham acesso a métodos contraceptivos e ao aborto. Para a ONU, governos não podem simplesmente pedir que as mulheres não engravidem, sem garantir o acesso aos serviços adequados. “Como é que essas mulheres podem não engravidar e, ao mesmo tempo, não contar com a possibilidade de interromper a gravidez?”, questionou a porta-voz da ONU para Direitos Humanos, Cecile Pouilly. Ao Estado, membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicaram que os técnicos estão fazendo um levantamento sobre o impacto da microcefalia em leis de aborto. Mas, por enquanto, a entidade se recusa a adotar uma postura sobre o assunto. A OMS ainda vem alertando que não cabe a um governo sugerir que uma mulher engravide ou não, diante da presença de um mosquito. Mas o segmento de direitos humanos da ONU decidiu se pronunciar. Para Zeid, o apelo dos governos pelo adiamento de gravidez “pouco significa” em países com acesso restrito aos serviços de saúde, aborto ou preservativos. “Leis e políticas que restringem o acesso às mulheres para esses serviços(aborto e contraceptivos) precisam ser urgentemente revistos.” A ONU estima que,pelo mundo, 47 mil mulheres morrem ao ano por abortos clandestinos.E o temor da entidade é que o número possa aumentar de forma significativa diante do zika. A declaração vem justamente no momento em que o governo brasileiro não quer fomentar esse debate. Indagado, o ministro da Saúde, Marcelo Castro, limitou a lembrar que “a lei (brasileira) proíbe aborto” para casos de bebês com microcefalia. “A posição do Ministério da Saúde é pela defesa da legalidade.” Para o ministro,só se houvesse mudança na legislação, o que depende do Congresso Nacional, poderia existir alternativa. Já um ministro do Palácio do Planalto disse ao Estado que o governo não vai entrar na discussão sobre liberalização. Segundo ele, neste momento é “impensável” enfrentar um debate tão polêmico,já que a presidente Dilma Rousseff passa por uma crise tanto política quanto econômica. Repercussão. Historicamente em lados opostos no debate do aborto, Igreja Católica e movimento feminista divergiram também na hipótese de a prática ser permitida por microcefalia. A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil(CNBB)publicou em sua página na internet um artigo do bispo auxiliar de Porto Alegre, d. Leomar Antônio Brustolin, em que considera que “o aborto, sobretudo nos casos de gestação de criança portadora de patologias, torna-se a prova real de desrespeito com todo o gênero humano”. Para o movimento feminista, a proibição fere a autonomia das mulheres, sobretudo das mais pobres. “O aborto é livre para quem tem dinheiro. O grande problema dessa epidemia de microcefalia é que o ônus recaiem todos os sentidos sobre a mulher pobre: ela não pode ter controle sobre o corpo e é ela quem terá mais trabalho para dar atenção ao filho com deficiência”, diz Sonia Coelho, integrante da Sempre viva Organização Feminista e da Marcha Mundial das Mulheres. Procurados, o Conselho Federal de Medicina (CFM)e a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) não comentaram. A Febrasgo informou que os médicos se reunirão nos próximos dias para definir a posição da entidade sobre o tema.

 

COLABOROU FABIANA CAMBRICOLI

Órgãos relacionados:

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Vírus circula por 33 países e tem primeiros casos na África e na Ásia

 

Apontado como o causador do surto de microcefalia no Brasil, o zika vírus já está circulando em pelo menos 33 países de três continentes, revela o mais recente boletim epidemiológico da Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgado ontem. De acordo com o documento, além dos 26 países e territórios das Américas afetados pela doença, passam a figurar na lista de nações com transmissão interna do zika Cabo Verde, na África, IlhasMaldivas,Fiji,Tonga, Samoa, Ilhas Salomão e Vanuatu, todos na Ásia.

Embora países africanos e asiáticos já tenham registrado surtos localizados da doença desde2007,é a primeira vez desde 2015, quando começou o grande surto nas Américas, que um país de fora do continente americano registra casos da doença. Segundo a OMS, além dos33 países com casos autóctones já reportados no período entre 2015 e 2016, há indicação de circulação viral em outras seis nações: Gabão, na África, Indonésia, Tailândia, Camboja, Filipinas e Malásia, na Ásia. No boletim, a organização ressalta a forte suspeita de relação do surto de zika com o aumento de casos de microcefalia no Brasil, mas também relata o crescimento de casos de outras síndromes neurológicas em países atingidos pela doença. Segundo o boletim da OMS, pelo menos cinco países das Américas já registraram aumento de casos de Síndrome de GuillainBarré (SGB) desde o início do surto de zika: Brasil, Colômbia, El Salvador, Suriname e Venezuela.

A doença, que acomete o sistema nervoso podendo levar à paralisia e até à morte, atingiu 1.708 pessoas no País em 2015, um aumento de 19% frente ao índice registrado no ano anterior, quando 1.439 pessoas ficaram doentes, segundo a OMS. Também foi registrada alta de casos da doença na Colômbia. Somente no primeiro mês de 2016, o país sul-americano notificou86 casos da síndrome, um terço do número previsto para o ano inteiro./F.C.