Título: Mesa redonda antes do jogo
Autor: Cavalcanti, Leonardo
Fonte: Correio Braziliense, 08/10/2011, Política, p. 4
Ao mesmo tempo em que nos acusam de ter complexo de vira-latas - por achar lindo e maravilhoso ser a sede dos jogos -, culpam-nos de sermos agressivos e um tanto estúpidos de ficar a discutir sobre meia-entrada e cerveja nos estádios, e misturar tais coisas com soberania nacional
Era 30 de outubro de 2007. Há quase quatro anos, naquele fim de tarde de Zurique, o presidente da Fifa, Joseph Blatter, anunciou o Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014. Na plateia, um certo anticlimax, afinal, todos sabiam do resultado e, de mais a mais, éramos candidatos únicos, só poderíamos perder para nós mesmos. Ganhamos, pois.
Antes de abrir o envelope branco, Blatter amarrou no discurso a responsabilidade dos políticos brasileiros com a Fifa. Era como se dissesse: eles toparam, aceitaram as nossas regras.
"Os inspetores da Fifa voltaram do Brasil com uma série de impressões depois dos contatos que estabeleceram com as autoridades do país", disse o chefão da Fifa na ocasião.
Blatter continuou, dando os nomes, ou melhor, os cargos, dos bois: "Governadores, representantes do governo, dos estados, dos municípios, juízes, deputados e senadores".
Mesmo sem surpresas, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez um discurso exaltando o povo brasileiro, o comportamento da população, que ri e chora com o futebol. Foi lindo.
Quatro anos depois do anúncio oficial e a três anos de a bola rolar, aqui estamos em meio a controvérsias que já deveriam ter sido diluídas. Mas gostamos, nós, brasileiros, da polêmica.
É como se estivéssemos todos numa grande mesa redonda sobre o Mundial de futebol. Uma mesa improvisada, que já deveria ter sido montada há mais tempo. Mas nunca é tarde.
Vira-latas A controvérsia em torno da Copa acabou se transformando numa espécie de esquizofrenia. Ao mesmo tempo em que nos acusam de ter complexo de vira-latas ¿ por achar lindo e maravilhoso ser a sede dos jogos ¿, culpam-nos de sermos agressivos e um tanto estúpidos de ficar a discutir sobre meia-entrada e cerveja nos estádios, e misturar tais coisas com soberania nacional.
A cerveja nos estádios pode até não ser a coisa mais importante para debater quando ainda falta estrutura para estádios e o tal legado social da Copa pode não virar realidade.
Mas o que está em jogo ¿ sem trocadilho ¿ é saber como uma legislação pode valer para brasileiros ao longo do tempo e, em menos de um mês, ser alterada, virada de cabeça para baixo.
Isso não tem nada a ver com soberania nacional, e sim com hábitos, cultura e o estabelecimento de políticas públicas para a população, como segurança pública, por exemplo.
Tais regras e leis podem até mudar ao longo do tempo ¿ é natural que isso ocorra ¿, mas nunca ser interrompidas por um mês e depois acabar retomadas com o fim da Copa.
Legislação Um dia alguém avaliou que seria razoável proibir bebida alcoólica nos estádios de futebol, fez um texto que acabou aprovado por alguma câmara legisladora. E a população aceitou.
Houve, naquele momento, um acordo entre legisladores e torcedores. Estabeleceu-se que, para a segurança da plateia, o melhor seria proibir bebidas que incitassem a violência.
Como explicar que naquele mesmo estádio as regras mudem de uma hora para outra e depois voltem a ser o que era antes, seja por conta de cerveja ou meia-entrada?
Outra coisa O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, sugeriu que o governo pague a diferença no custo dos ingressos em que a lei prevê a meia-entrada nas partidas de futebol. Na lógica do alcaide, o nosso poder público ¿ eu e você ¿ terá de ressarcir a Fifa de alguma forma para não ferir a legislação brasileira e aceitar as exigências da entidade internacional durante a Copa: "Se fizerem valer esses direitos, é a gente que tem que pagar. A credibilidade do Brasil está em entregar aquilo que assinou. O que o governo do Rio combinou, terá que fazer. Se temos leis específicas, caso da meia-entrada, o poder público terá que subsidiar". A pergunta que não cala é: você, caro leitor, quer pagar por isso?