O globo, n. 30153, 26/02/2016. Opinião, p. 17

Mais gente na fila

À parte os casos de zika, número de pessoas com deficiência já é expressivo

No centro das preocupações atuais, a microcefalia não é novidade na Medicina. A surpresa em relação a sua ocorrência advém do aumento de incidência verificada e da associação causal com um agente que até então não era considerado capaz de grandes danos à saúde do hospedeiro — o vírus zika.

O tamanho do cérebro pode ser reduzido por qualquer condição que cause dano ao tecido neurológico enquanto este se desenvolve. Classicamente, as infecções congênitas: toxoplasmose, rubéola e citomegalovirose. Gestações de risco ( com ou sem prematuridade e complicações de parto e sofrimento fetal), asfixia perinatal e complicações diversas de bebês recém- nascidos também acarretam danos ao cérebro em desenvolvimento, com ou sem microcefalia associada, e associam- se com risco aumentado para o desenvolvimento de paralisia cerebral. Esses bebês, sem garantia de uma vida sem sequelas neurológicas, representam no mundo 0,21 por mil nascidos vivos.

Condições sociais e médicas precárias são fator de risco para muitas destas doenças, pois precarizam o acesso ao pré- natal e à assistência de qualidade ao parto. Alguns estudos sugerem que até 80% das crianças deficientes do planeta vivam em países de baixa e média renda e que a gravidade das sequelas aumenta com a inexistência de uma rede de saúde de reabilitação e educação que possibilite a superação de danos.

Portanto, independentemente dos novos casos relacionados à infecção congênita pelo zika vírus, já existe um número expressivo de pessoas de todas as idades com deficiência. Por todo o país, é evidente que a quantidade de vagas para atendimento é insuficiente, a logística de fluxo multiprofissional é inadequada e a integração dos sistemas de saúde e educação está ainda lutando contra a falta de treinamento profissional, financiamento e planejamento.

Quando nasce uma criança com microcefalia, devemos pensar no contexto de um cidadão brasileiro com poucas chances futuras de trabalho produtivo e demandas especiais em saúde e educação, dependência de cuidador presente em tempo integral, acarretando impacto financeiro, de saúde mental e de produtividade laboral para toda a família. Quando falamos em deficiência de qualquer natureza, a mudança da história natural de exclusão social só é alcançada com medidas que encaram o problema sem hipocrisia, com meios reais de modificar o cenário, e não apenas atividades esporádicas e sem planejamento individual.

É importante ressaltar que a fila para tratamento de reabilitação na qual as crianças com zika congênita se inserem já existe em nosso país e está longa. Nela encontram- se crianças com síndrome de Down e outras doenças genéticas, paralisia cerebral, doenças degenerativas e infecciosas com impacto neurológico, além de tuberculose, HIV e outras. Para que lugar na fila estas pessoas serão deslocadas se apenas considerarmos prioritário o atendimento dos bebês com zika? Que a tragédia sirva para lançar luz sobre este problema amortecido e que as decisões governamentais sejam justas.

Heloisa Viscaíno Pereira é presidente do Comitê de Neurologia da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro