O globo, n. 30131, 04/02/2016. Colunas, p. 18

MÍRIAM LEITÃO

Com Alvaro Gribel (De São Paulo)

Por: Míriam Leitão

 

O mordenizador

 

Foi uma geração brilhante a que desembarcou no Itamaraty nos anos 1960, para sorte do Brasil. Ela começou sua carreira passando pelo trauma da ruptura com a democracia, mas fortaleceu seus valores e levou a política externa para fora daquele túnel, preparando o país para a globalização. Luiz Felipe Lampreia era um líder desse grupo de diplomatas.

 

Não por acaso ele chegou ao ápice da carreira, exercendo por sete anos o cargo de ministro das Relações Exteriores. Lampreia se preparou para isso. Toda aquela geração demonstrava estar treinando para exercer postos de comando na vida pública brasileira. Eles tinham origem diversa. Alguns eram de famílias de diplomatas, alguns eram de famílias de funcionários públicos ou de profissionais liberais. Nas gestões Azeredo da Silveira, no governo Geisel, e Saraiva Guerreiro, no governo Figueiredo, eles assumiram postos-chave no Itamaraty e prepararam a Casa para uma travessia delicada e fundamental para o país: modernizar a política externa e, ao mesmo tempo, voltar aos fundamentos.

O embaixador João Augusto de Araújo Castro, que fora chanceler de João Goulart, foi sempre uma fonte de inspiração. Com ele, trabalharam alguns dessa geração. Havia outros ícones, como o próprio Rio Branco. Muito do que ajudaram a confirmar na diplomacia brasileira foi atacado durante os governos petistas, principalmente pela ação direta do Palácio do Planalto. Alguns sofreram o ostracismo. Ouvi de um deles, que havia sido deslocado para postos burocráticos no governo Lula, que ele queria fazer diplomada e estava assinando documentos.

Muitos deles, contudo, tiveram tempo para realizar todo o seu potencial, como aconteceu com o próprio Lampreia, o embaixador Ronaldo Sardenberg, Marcos Azambujá, Roberto Abdenur e os falecidos Bernardo Pericás, Sebastião do Rego Barros e Clodoaldo Hugueney. A lista é extensa. Contudo, são muitos os talentos ligados ou formados por esta geração, desperdiçados em favor de uma política equivocada, que defendeu projetos duvidosos, como os ideais chavistas para a América Latina. Eram patrimônio do Brasil e foram postos para escanteio por burrice e por ressentimento de quem dava as cartas.

Lampreia assumiu, em 1977, o cargo de porta-voz do Itamaraty e iniciou um processo de abertura da Casa cujo significado foi muito além de ter boas relações com os jornalistas. A política iniciada por Lampreia, de abrir portas, gabinetes e assuntos aos jornalistas — à qual Bernardo Pericás, seu sucessor, deu continuidade— promoveu a aproximação do país com sua política externa através da imprensa. Num momento de divórcio da sociedade com o governo, em plena vigência do AI5, aquele passo foi fundamental para tudo o que se vaia no país nos anos seguintes, que levou à abertura, anistia, democratização.

Foi um privilégio desembarcar no Itamaraty em 1977, e ver o início dessa abertura de portas. Até porque a Lampreia e, depois, a Pericás, devo o fato de ter conseguido permanecer cobrindo o tema, que exigia acompanhar o ministro e o presidente em viagens internacionais. A credencial que o Palácio do Planalto me negaria, por eu ter sido processada pela Lei de Segurança Nacional, era concedida pelo Itamaraty, numa forma deliberada de contornar o SNI.

Lampreia chegava cedo na sala de imprensa, para ler os jornais e se preparar para os muitos pedidos que chegariam durante a tarde e que ele responderia aos jornalistas no briefing. Por isso, passei a chegar mais cedo também. Foi quando tive longas conversas com o porta-voz, nas quais soube mais do que as últimas notícias. Nelas, fui aprendendo a lógica, os princípios e a trajetória da política externa brasileira. Havia outros grandes diplomatas com os quais urna entrevista acabava se transformando em aulas de história do país, como Rubens Ricupero, ou de comércio internacional, como Paulo Tarso Flecha de Lima e José Botafogo Gonçalves.

Como chanceler, lampreia deixou a marca de um país que sabe do seu tamanho e importância e por isso queria se incluir no mundo globalizado. Fará urna falta enorme no debate brasileiro, mais ainda com o retrocesso recente. Para os amigos, ficou a sensação dolorida de que a conversa poderia ter continuado.