Correio Braziliense, n. 19263, 21/02/2016. Política, p. 8

Com inflação, brasileiro volta a estocar alimento

RETRATOS DO BRASIL » As compras de mês se tornam rotina entre as famílias. Nos supermercados, em média, vendas chegam a cair 70% na segunda quinzena

 

RODOLFO COSTA

ISABELLA ALVIM

 

 

A disparada da inflação está fazendo as famílias retomarem velhos hábitos de consumo. As compras de mês — prática muito comum na década de 1980 e início dos anos 1990 — voltaram com tudo. A necessidade de estocar mercadorias, principalmente alimentos não perecíveis, está tão latente, que as vendas dos supermercados estão se concentrando nos primeiros 15 dias do mês. Na segunda quinzena, em média, o movimento nas lojas chega a cair 70%. “Assim que meu pagamento sai, corro para o supermercado. Estoco tudo o que posso, de comida a produtos de limpeza. Assim, não corro o risco de ficar sem comida quando o dinheiro acabar”, diz a aposentada Suzana Santos Silva, 67 anos. Assustada, ela treme só de pensar na possibilidade de o país voltar aos tempos anteriores ao Plano Real. “Seria o caos”, afirma.

As compras de mês se intensificaram a partir do segundo semestre do ano passado, quando as famílias sentiram todo o baque no orçamento provocado pela forte alta das tarifas públicas, sobretudo as de energia elétrica. “De repente, o dinheiro começou a faltar. Passou a sobrar mês”, frisa a nutricionista Ângela Maria, 47. Temendo ficar com a despensa vazia por falta de recursos e das constantes remarcações de preços, ela encurtou as idas ao supermercado. Primeiro, as compras quase que diárias se tornaram semanais. Depois, quinzenais. “Agora, compro tudo o que a casa precisa de uma única vez. Só volto ao supermercado no mesmo mês em caso de muita necessidade ou se encontrar boas promoções”, relata.

Pelos cálculos da Associação Paulista de Supermercados (Apas), que acompanha o movimento do principal centro consumidor do país, 40% do volume total de vendas do setor estão concentrados nos 10 primeiros dias do mês. Aos poucos, diz o gerente do departamento econômico e de pesquisas da entidade, Rodrigo Mariano, está se voltando ao quadro que prevalecia antes do Plano Real, quando de 60% a 70% das vendas se concentravam nos primeiros 10 dias. “É bem provável que esse movimento se aprofunde ao longo do tempo, se a inflação não cair”, avalia. “A alta dos preços é muito ruim para os consumidores, sobretudo os mais pobres”, emenda. A inflação está em alta desde 2011, quando Dilma Rousseff tomou posse. Em 2015, atingiu 10,67%, a maior em 13 anos. Em janeiro, os alimentos computaram o maior reajuste para o mês: 2,28%.

 

Itens essenciais

A estabilidade de preços que vigorou no país desde o fim da hiperinflação provocou mudanças profundas nos hábitos de consumo das famílias. Sem o fantasma das maquininhas de remarcação de preços e com uma moeda forte, as pessoas passaram a fazer compras mais frequentes, pois tinham a certeza de que, quando voltassem aos supermercados, poderiam adquirir a mesma quantidade de produtos com a mesma quantia de dinheiro. “Hoje, a situação é dramática”, afirma a aposentada Elizabeth Fernandes, 77. “Todos os dias, as mercadoria aumentam”, emenda.

Pelas contas dela, em um ano, os preços nos supermercados dobraram. “Para comprar tudo o que preciso, gasto R$ 1 mil. Há um ano, gastava cerca de R$ 500”, diz Elizabeth. A aposentada ressalta que, mesmo cortando alguns itens do carrinho, as compras do mês abocanham 33% da renda familiar. “Por isso, assim que recebo minha aposentadoria, pago as contas básicas de casa, como água e luz, e corro ao supermercado para comprar tudo o que for essencial. “O que sobra do dinheiro, guardo para suprir algumas necessidades ao longo das semanas seguintes”, afirma.

A diarista Selma de Jesus, 38, segue a mesma cartilha. “Desde que passei a estocar mercadorias, consegui economizar. Estava impossível ir ao supermercado toda semanas e gastar mais, levando menos produtos para casa”, assinala. Para ela, o governo precisa fazer alguma coisa urgentemente para conter a arrancada dos preços. “Estou cortando tudo o que posso em casa. Escolhendo contas para pagar. Mas essa situação é insustentável. Daqui a pouco, corro o risco de parar na lista de caloteiros”, desabafa. Ela destaca que já conversou com os dois filhos. “Carne, só uma vez por semana. Agora, será arroz, feijão, ovo e salada. É o que a minha renda comporta.”

 

Desilusão

Os volumes de compras do mês não variam muito de uma região para a outra, observa Givanildo de Aguiar, gerente do Super Veneza. Nas lojas da rede situadas em bairros de classe média, a primeira quinzena do mês responde por 58% a 63% do faturamento total. Nos estabelecimentos em áreas mais pobres, a proporção varia entre 60% e 65%. “As pessoas têm reclamado muito dos constantes reajustes, especialmente dos produtos importados ou que têm insumos cotados em dólar”, ressalta. O pior, acrescenta ele, é que a inflação não dará trégua tão cedo. “A carestia está longe de diminuir”, enfatiza.

Na opinião de Givanildo, a retomada de velhos hábitos da inflação é ruim, porque mostra que as pessoas estão perdendo a confiança na capacidade do governo de manter a casa em ordem. “A desconfiança é grande”, diz. Para o economista-sênior da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Fábio Bentes, como as famílias estão muito endividadas, faz sentido elas tentarem preservar o poder de compra com a aquisição de bens essenciais em quantidade maior para guardar em casa. A inflação alta distorce toda a economia, torna a vida das famílias um inferno, sobretudo as mais pobres, que não têm para onde correr.

“Quando as compras do mês acabam antes do planejado, é um transtorno. Há dias que tenho que esperar meus filhos se alimentarem para ver se sobra alguma coisa para mim e para o meu marido”, relata a catadora de lixo Maria José de Jesus, 34. “E pensar que, até alguns anos atrás, mesmo ganhando pouco, guardava um dinheirinho para comprar uma ou outra coisa diferente. Hoje, se desviar do caminho, ficamos sem comida”, acrescenta. Maria sofre com a situação. “Seria muito bom se pudéssemos voltar no tempo, quando ainda se podia ter esperança. Agora, a única coisa que nos resta é desilusão”, lamenta.

Carestia disseminada

A inflação está disseminada. De cada 10 produtos e serviços pesquisados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), oito estão sendo reajustados. Segundo os especialistas, esse quadro não mudará tão cedo, pois os preços dos alimentos vão sentir os efeitos de eventos climáticos, e o dólar deve se manter em alta, devido às desconfianças dos agentes econômicos em relação ao governo. As projeções apontam que a inflação deste ano ficará entre 7,5% e 8%, bem acima do teto da meta, de 6,5%, definido pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). O desarranjo fiscal tende a pressionar o custo de vida.