O globo, n. 30.178, 22/03/2016. Mundo, p. 23
Construindo pontes
Por: Henrique Gomes Batista
“Precisamos nos concentrar no que nos une, não no que nos separa” Raúl Castro Presidente de Cuba “Haverá mudanças aqui, e acredito que Raúl Castro entenda isso” Barack Obama Presidente dos EUA
Num dia histórico, os presidentes dos EUA, Barack Obama, e de Cuba, Raúl Castro, apertaram as mãos em Havana, onde um mandatário americano não pisava havia 88 anos. Raúl elogiou Obama pelos avanços nas relações bilaterais, mas cobrou o fim do embargo, com apoio do visitante, e a devolução de Guantánamo, relata o enviado especial
HENRIQUE GOMES BATISTA. “Este é um novo dia”, disse Obama, que reforçou ainda haver “sérias diferenças” sobre democracia e direitos humanos. - HAVANA- “Este é um novo dia”, disse Barack Obama, ao lado de Raúl Castro no Palácio da Revolução, sobre a relação entre Cuba e Estados Unidos. Os dois presidentes se encontraram ontem, no segundo dia da histórica viagem do americano a Havana. E em clima amistoso, falaram abertamente sobre os dois temas que afastam os países: o embargo econômico dos EUA a Cuba e os problemas de direitos humanos na ilha dos Castro, cujo regime é acusado de perseguir opositores. Mas a falta da divulgação de grandes acordos — foram firmadas parcerias em agricultura, saúde e educação, além de um acerto com a Google para fornecer banda larga — indica que ainda há muitas diferenças entre as nações.
— Destruir uma ponte é fácil e requer pouco tempo, mas reconstruí- la solidamente é muito mais demorado e difícil. — afirmou Castro. — Precisamos nos concentrar no que nos une, não no que nos separa.
O embargo econômico foi a tônica das declarações dos presidentes, cada uma com 15 minutos. Raúl, em um forte discurso ao lado de Obama — que olhava para o alto — afirmou que o bloqueio “permanece como o obstáculo mais importante ao nosso desenvolvimento econômico e ao bem- estar do povo cubano”. Raúl afirmou ainda que, enquanto o Congresso americano não analisa o fim da sanção, o governo dos EUA deveria flexibilizar as regras com mais atos administrativos. EMBARGO FOI CITADO SETE VEZES Raúl citou sete vezes a palavra “embargo”, além das diversas outras que repetiu o tema na inédita coletiva de imprensa — a primeira vez em que ele foi questionado por jornalistas estrangeiros. Obama, por sua vez, afirmou ter confiança de que haverá o fim do embargo mas não citou datas — “eu não posso ter certeza absoluta”. Segundo o americano, ter 40 membros do Congresso em sua viagem mostra o interesse que tanto democratas como republicanos têm na ilha caribenha.
E em tom mais conciliador que o colega ( que ouviu sua fala olhando em sua direção), Obama vinculou o fim das restrições a mudanças nos direitos humanos.
— Um dos impedimentos para fortalecer esses laços são os desacordos sobre direitos humanos e democracia. E, na medida em que possamos ter uma boa conversa e fazer progressos sobre isso, acredito que vai nos permitir ver o pleno florescimento de uma relação que é possível.
Obama lembrou que os EUA têm relações com países com os quais não concordam totalmente em temas de direitos humanos: China, Vietnã e Mianmar. Mas afirmou que vai defender sua posição:
— A relação não será transformada da noite para o dia, ainda temos muitas diferenças. Isso não será decidido pelos EUA ou por qualquer outro país. O futuro de Cuba será decidido pelos cubanos, e por ninguém mais. Ao mesmo tempo, onde quer que formos, vamos continuar a falar em favor dos direitos humanos universais — ressaltou. — Deixei claro que os Estados Unidos continuarão defendendo a democracia, inclusive o direito do povo cubano a decidir seu próprio futuro.
O presidente americano, contudo, não respondeu sobre a situação das Damas de Branco, detidas por protestar horas antes de sua chegada. O questionamento mais duro sobre direitos humanos partiu de um jornalista cubano- americano. Raúl foi perguntado sobre os presos políticos e pediu ao repórter que lhe fornecesse uma lista. A Casa Branca, por sua vez, diz ter entregado diversas listas de presos políticos ao governo cubano.
— Me diga o nomes dos presos políticos que existem em Cuba que vamos soltá- los todos ainda esta noite — desafiou o cubano, que em diversas vezes se mostrou confuso diante das perguntas dos jornalistas e foi socorrido por um assessor.
Numa destas vezes, durante a fala de Obama, o presidente americano, incomodado, mas sorrindo, parou de falar até que Raúl olhou para ele, quando disse “excuse me”.
Ontem, Antonio Rodiles, líder do Fórum pela Liberdade e organizador do movimento # TodosMarchamos, foi detido novamente. Ele fora preso e solto domingo:
— O que está havendo em Cuba é um festival repressivo — esbravejou Rodiles, que hoje encontrará Obama.
Raúl Castro voltou a defender que direitos humanos são algo mais amplo e que passam por garantia a educação e saúde gratuitas, algo que, segundo ele, há em Cuba. Ele disse que, dos 61 acordos internacionais sobre o tema, seu país cumpre 47.
— Não se podem politizar os temas de direitos humanos — disse, lembrando que há diversas nações que “cumprem menos” os tratados que Cuba. OBAMA EVITOU FALAR DE GUANTÁNAMO O cubano também partiu para o ataque contra os EUA, criticando a “manipulação política e padrões duplos” sobre os direitos humanos e chamando de “indesculpável” a falta de acesso aos cuidados de saúde, educação e igualdade de salários nos EUA. E também pediu a devolução da base de Guantánamo ( Obama não tocou no assunto) e contou que não tiveram tempo de falar sobre a Venezuela, mas se mostrou preocupado com “a desestabilização” do país. Ambos concordaram, no entanto, em buscar mais acordos na área educacional, pesquisas científicas contra a difusão de vírus como o zika, mudanças climáticas e combate ao narcotráfico internacional.
Especialistas criticaram a declaração de Obama. José Miguel Vivanco, da Human Rights Watch, considerou “decepcionante” a atuação do americano.
— Era a oportunidade para ir além de princípios abstratos e falar dos abusos e restrições específicas que sofrem os cubanos, incluindo prisões arbitrárias, bloqueios na internet e as leis utilizadas para punir e perseguir opositores — afirmou.
Antes do encontro bilateral, Obama prestou homenagem a José Martí, o pai da independência cubana no século XIX. Ele deixou uma coroa de flores numa estátua na Praça da Revolução. No livro de presenças, destacou que Martí lutou pela liberdade, em crítica indireta ao atual regime. Ao final, após a execução do hino americano, cumprimentou o chefe da banda cubana: — Bom trabalho. De tarde, o americano esteve num encontro com lideranças empresariais cubanas e americanas.
— Vocês podem contribuir para seu próprio futuro — afirmou o presidente a cerca de 200 pequenos empresários da ilha. — A economia cubana vai avançar com seu trabalho: vai criar uma classe média crescente.
À noite, Obama foi recebido por Raúl para um jantar de Estado.