O globo, n. 30.186, 30/03/2016. Opinião, p. 16

‘Pílula do câncer’ afronta rigor de pesquisas médicas

Liberação do uso da fosfoetanolamina através de liminares e por iniciativa do Congresso abre precedentes que podem provocar danos irreparáveis à ciência e riscos para pacientes
 

Desde a escola de Medicina de Hipócrates, na Grécia, estudos sobre o câncer e a busca por meios científicos de combatê-lo são uma obsessão da Humanidade. O desenvolvimento científico mundial — em especial a partir do século XVIII, quando foram lançadas as bases da moderna anatomopatologia — estimulou impulsos quase exponenciais ao tratamento desse mal. No entanto, em pleno século XXI, a doença ainda representa grandes desafios para a Humanidade.

Boa parte das variações carcinomatosas já tem cura, respostas eficientes de medicamentos aumentam de forma notável as chances de sobrevida das vítimas, mas o pesadelo continua assustando: a despeito dos avanços médicos, estima-se que, no mundo, a média de óbitos entre os 12,7 milhões de pacientes diagnosticados por ano com câncer seja de 7,6 milhões de pessoas. No Brasil, registram-se anualmente 500 mil casos, com 176 mil mortes provocadas pela doença.

São números que dimensionam um drama não só vivido pelos doentes, mas compartilhado por suas famílias. Explicam o impacto na sociedade de quaisquer temas relacionados à cura definitiva da doença, mas não legitimam iniciativas que, alegadamente em nome de combater o fantasma da morte prematura, podem levar a graves prejuízos em pesquisas acadêmicas que, de fato, representem avanços nos tratamentos e benefícios reais para os pacientes.

A discussão aberta no país sobre os supostos resultados terapêuticos da fosfoetanolamina sintética no tratamento de pacientes com câncer parece marcada menos pela obediência ao rigor científico e à prudência que pela paixão, elemento a ser evitado não só no debate, mas, principalmente, nas pesquisas médicas. Produzida no Instituto de Química da USP, em São Carlos (SP), e distribuída informalmente desde 2014, a substância pode estar a meio caminho de ser uma panaceia, mero placebo, ou, como querem aqueles que defendem sua preceituação, um remédio de fato eficaz contra o mal. Mas, por não ter sido submetida aos protocolares e rigorosos testes (de confiabilidade e contra efeitos colaterais) que antecedem a liberação comercial de produtos médicos, deve permanecer na gaveta dos experimentos curiosos.

Ocorre que o debate deixou-se contaminar pela deletéria mistura de populismo e voluntarismo. A Justiça, arvorando-se conhecimentos que não lhe são próprios, tem dado liminares a favor da liberação da substância; no Congresso, um projeto autoriza a fabricação da “pílula do câncer" (...).

Em entrevista ao GLOBO, o pesquisador Carlos Gil Ferreira sintetizou esse movimento: “A Anvisa (vigilância sanitária) está sendo humilhada pelo Congresso”. Mais do que isso, são precedentes que podem causar danos irreparáveis à ciência.

 

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