Correio braziliense, n. 19295, 24/03/2016. Cidades, p. 23

Quando a infância é jogada no lixo

O trabalho infantil bate ponto bem na capital do país.A reportagem do Correio encontrou crianças trabalhando no lixão da Estrutural.Segundo catadores,a presença já foi maior.Governo afirma fazer monitoramento para afastar os pequenos de lá

Por: THIAGO SOARES e ED ALVES

 

THIAGO SOARES

ED ALVES

 

No lugar de brincadeiras e risos, o que se tem são o lixo e o olhar cansado. Os 200 hectares ocupados pelo Aterro Controlado do Jóquei, conhecido como Lixão da Estrutural, além de representarem um risco à saúde pública e ao meio ambiente, guardam o trabalho infantil. Tudo isso a menos de 15km do Congresso Nacional. Em uma visita ao local, a equipe do Correio flagrou crianças trabalhando como catadoras. O perigo mata adultos: no ano passado, pelo menos duas pessoas acabaram atropeladas por máquinas lá.

O espaço deveria ter sido desativado em agosto de 2014, de acordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), mas ainda passam por lá cerca de 600 pessoas por dia (leia O que diz a lei). A cada caminhão descarregado, os catadores buscam itens para reciclagem num modo de garantir o sustento. O ambiente é de muito lixo e mau cheiro. O gás emitido pela decomposição no solo incomoda, mas quem lida diariamente já se acostumou. Nenhuma criança deveria estar no local; entretanto, muitas delas fazem o papel de adulto e se arriscam nas montanhas de entulhos. A reportagem flagrou pelo menos quatro garotos, entre 11 e 14 anos. Catadores contam que é comum ver alguns por ali, mas que antigamente a presença era maior. “Alguns vêm com os pais; outros aparecem sozinhos mesmo”, conta um, que não quis se identificar.

Assim, como os adultos, ao verem a presença de uma câmera fotográfica, os pequenos ficam arredios. Um deles, ao perceber a presença da equipe, vira de costas e vai embora. Depois, retorna ao trabalho — duro mesmo para os adultos. Luíza Cunha, 56 anos, viu o marido ter que deixar o trabalho no local por motivos de saúde. Há 20 anos, ela veio para Brasília fugindo da miséria proporcionada pela seca no município de Cristalândia (PI). Desde então, Luíza tira o sustento do Lixão da Estrutural. Os seis filhos foram criados com o suor a partir do entulho. “Esse gás acaba com a saúde da gente. Aqui é muito perigoso, já vi uma pessoa morrer atropelada. Mas, infelizmente, não tem jeito. Se não fosse o lixão, não teria como sobreviver nessa cidade”, aponta Luíza.

 

Grupo de trabalho

O governo afirma que existe a fiscalização, porém confessa não ter nenhum projeto efetivo para evitar esse tipo de situação. O Executivo montou um grupo de trabalho para atuar na transição do lixão até o início das atividades em Samambaia. O GT é integrado por 15 órgãos.

Quem responde pela presença de crianças na Estrutural é a Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social, Igualdade Racial e Direitos Humanos. A assessoria de imprensa do órgão informou que presta diversos serviços assistenciais para qualquer pessoa interessada, mas confessou não desenvolver nenhum projeto na região. Quem mantém o monitoramento para impossibilitar o trabalho infantil no local é o Serviço de Limpeza Urbana (veja na matéria ao lado).

 

Espalhados pelo Brasil

Segundo estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e divulgado pelo Tribunal Superior do Trabalho, existem crianças e adolescentes em lixões em cerca de 3.500 municípios brasileiros. Quase metade deles, 49%, está na Região Nordeste; 18% na Região Sudeste; e 14% na Região Norte. A Região Centro-Oeste é a que tem menos crianças em lixões, com 7% do total, seguida da Região Sul, com 12%.

 

O que diz a Lei?

Sancionada em 2 de agosto de 2010, a Lei Federal nº 12.305, conhecida como Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), determinava ações como a extinção dos lixões do país e a substituição por aterros sanitários, além da implantação da reciclagem, reutilização, compostagem, tratamento do lixo e coleta seletiva em todo o país. A lei dava prazo de quatro anos para que as cidades se adequassem à PNRS, ou seja, deveriam estar em prática já em 2014. Mas, em julho do ano passado, uma emenda prorrogou os prazos entre 2018 e 2021, de acordo com município. No caso específico do Distrito Federal, a data limite para acabar com o Lixão da Estrutural é 31 de julho de 2018. Ela se encaixa no prazo dado a capitais e municípios de região metropolitana.

Já no Estatuto da Criança e do Adolescente, o artigo quinto diz: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. Depois, todo o capítulo 5º fala especificamente sobre o trabalho infantojuvenil e determina: “É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz”. Também aponta que nenhum adolescente pode realizar trabalho noturno, “perigoso, insalubre ou penoso” e “realizado em locais prejudiciais à sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social.”