Título: Fim de um tempo
Autor: Machado, Antonio
Fonte: Correio Braziliense, 07/10/2011, Economia, p. 9

Sobre Steve Jobs quase tudo já fora dito antes de sua morte, aos 56 anos, vítima de câncer nos pâncreas diagnosticado em 2004 que o levou a definhar, fisicamente, desde então, mas sem nunca abater o seu genial espírito transformador e notavelmente inteligente.

Falou-se muito de sua enorme visão para captar antes de qualquer outro o que nem nós podíamos suspeitar de que não conseguiríamos viver sem o que ele nos apresentava ¿ e rapidamente copiado pela concorrência: do celular sem graça, transformado num computador miniaturizado, o iPhone, ao tocador portátil de música, o iPod, o pós-Walkman, que parecia o fim de linha desse setor da eletrônica.

Tudo o que ele concebeu para a sua Apple já estava inventado. Não era no desenvolvimento tecnológico que estava a sua veia criativa, nem se preparara para isso. Jobs nunca passou do colegial. O que ele tinha de melhor era a sua humanidade, a fonte de sua enorme e comprovada capacidade para pegar o que já existia, como o telefone celular, e transformá-lo num aparelho imprescindível.

Mas também fácil de ser usado, uma das marcas registradas de tudo o que criou para a Apple, além da originalidade e beleza do design do artefato, outra de suas muitas obsessões. A sua genialidade era essencialmente humana, o que talvez elucide a duradoura fidelidade dos consumidores da Apple. Um público apaixonado, com perfil mais para o de militante de uma causa que para o do comprador casual.

Algo mais intrínseco à marca da maçã, enigmático, é que leva ¿ ou levava, dependendo de como os sucessores conduzirão o legado ¿ uma multidão a varar madrugadas, fazendo fila onde há uma loja da rede Apple espalhada pelo mundo, inclusive no Brasil, apenas para ser um dos primeiros a comprar um lançamento, às vezes só o upgrade de uma versão antiga. E pagando mais caro que produtos similares.

Ele não conseguiu esse fervor pelas coisas da Apple apenas com os recursos do marketing, que sempre preferiu minimalista. A sua arte parece vir da época da contracultura, dos anos 1960 e 1970, tempos de questionamento de valores, quebra de convenções e enfrentamento da ordem vigente. E também de solidariedade coletiva, ode ao amor, a explicação tantas vezes dada por Jobs ao ser instado a revelar o segredo de seu sucesso. Algo como imaginar o que o outro deseja ¿ ainda que não soubesse o que seria ¿, e pensar como surpreendê-lo.

Desconfiado dos MBAs Não se chega a isso com ideias pré-concebidas, saídas dos manuais dos cursos de administração. Jobs e os formados em MBA talvez por isso nunca tivessem convivência fácil. Nos primórdios da Apple ele foi buscar um deles, então ícone de Wall Street, John Sculley, CEO da Pepsi, para fazer o que todos lhe diziam uma empresa tem de ser ¿ hierárquica, condicionada pelo orçamento, voltada ao resultado.

Jobs acabou demitido em 1985, contrariado com os limites impostos pela administração. Saiu para criar o que sugestivamente batizou de NeXT (próximo, em inglês), como a indicar que daria a volta por cima, e depois a Pixar, o vitorioso estúdio de animação gráfica.

Maturidade do hippie O que aconteceu? A Pixar foi vendida à Disney em troca de ações, e Jobs tornou-se seu maior acionista individual. A NeXT, onde ele desenvolveu o sistema operacional que veio a ser a base dos novos Mac, foi vendida à Apple, levando-o a voltar à casa que fundara em 1976 com o engenheiro Steve Wozniak, que saíra 10 anos antes com ele e nunca mais voltou. A Apple estava quase falida, e Jobs foi o recurso de última instancia dos acionistas para tentar salvá-la.

O jovem transgressor, mais maduro, conciliando o viés inovador à busca do resultado, e sem ter perdido seu maior talento, o anseio de surpreender, fez o que parecia impossível: multiplicou por 113 o valor de mercado da Apple, hoje de US$ 340 bilhões. É o 2° maior do mundo, abaixo do da petroleira Exxon, e em alguns dias o 1°.

Voz que ninguém calou O desapego de Jobs ao convencional, sua força libertadora para a inovação, deve vir de sua juventude, quando foi plantada a semente da internet, criada pelos militares durante a chamada Guerra Fria para o caso de um ataque nuclear aos EUA, permitindo a comunicação descentralizada, e assimilada por intelectuais libertários como um meio livre e anárquico de propagação de ideias sem intermediários.

Os eflúvios desse ambiente em San Francisco, onde foi criado por pais adotivos, geraram outros visionários de seu tempo. Jobs foi o maior deles. Em discurso a alunos da Universidade de Stanford, bem perto dali, em 2005, ensinou: "Não se apeguem a dogmas. Não deixem que o barulho da opinião dos outros cale a sua própria voz".

Síndrome de Peter Pan Seguramente, o espírito combativo dos jovens da geração de Jobs, dos protestos de 1968, nada tem a ver com o Estatuto da Juventude votado na Câmara a partir de relatório da deputada Manuela d"Ávila (PCdoB), parlamentar jovem, mas talvez acometida pela síndrome de Peter Pan. Seu texto torna obrigatória a meia passagem em ônibus intermunicipais e interestaduais. E "meia" em eventos culturais e esportivos, incluindo jogos de futebol. Quem será beneficiado? É onde a coisa pega. Qualquer um de 15 a 29 anos, quando a partir de 21 já se está careca em ser "de maior". Alguém pagará pelo que nem valor educativo tem. Pessoas acima de 60, idade que não incapacita a maioria, já pagam meia passagem. Mas todos pagam de algum jeito.