O globo, n. 30.168, 12/03/2016. Rio, p. 8

Um zika mais violento

Cientistas da UFRJ investigam suspeita de reincidência da doença em bairro de Nilópolis

Por: Ana Lúcia Azevedo

 

“Eu fiquei assustado com a situação lá. O zika parece estar se manifestando de forma diferente” Amílcar Tanuri Virologista

Um surto atípico de zika em moradores de Olinda, em Nilópolis, é estudado por pesquisadores da UFRJ. Além de sintomas pouco comuns, os casos suscitam a suspeita de que é possível a mesma pessoa contrair o vírus duas vezes. Um rapaz, que teria tido reincidência da doença em janeiro, ainda apresenta o vírus ativo na urina. De 15 testes feitos no bairro, só um não deu positivo para zika, revela O vendedor Cristóvão da Silva não fala, murmura. Caminhar lhe parece impossível. Qualquer movimento o tortura desde terça-feira. Um médico disse ser dengue. Sua mulher, também doente, teve diagnóstico de zika. Quase todos os vizinhos estão ou estiveram enfermos com diagnósticos de zika, dengue ou chicungunha. O bairro onde moram tem tantas pessoas com sintomas de síndromes febris que deixou cientistas da UFRJ estarrecidos. Eles investigam em Olinda, Nilópolis, um surto que parece ser uma manifestação distinta do zika. E não descartam casos de coinfecção (duas das doenças ao mesmo tempo) e reincidência (quando o paciente volta a ter o vírus). Alguns dos doentes sofrem dores muito fortes. E apresentam sintomas menos frequentes no zika, como dores e inchaços articulares, mais intensos dos que os observados em outros lugares.

Apreensão. Alan Menezes, cuja mãe adoeceu duas vezes: “Estamos preocupados porque ninguém sabe que doença é essa. Sobram mosquitos nos terrenos abandonados”

— No início, pensamos se tratar principalmente de chicungunha, devido às dores fortes, ao inchaço nas articulações e à duração. Além disso, pessoas relatam ter adoecido duas vezes — conta o chefe do Laboratório de Virologia Molecular da UFRJ, Amílcar Tanuri, um dos maiores especialistas do Brasil em retrovírus, como o zika.

Os primeiros 15 exames de urina analisados na UFRJ, porém, revelaram o zika. E um deles, o chicungunha.

— Estamos no início. E ali há tantos doentes e mosquitos, que pode haver casos de zika, dengue e chicungunha. Nos preocupam os casos de possível reincidência de zika, em que a pessoa manifesta sintomas mais de uma vez e a doença parece se tornar crônica. Não sabemos como o zika escapa do sistema de defesa do organismo, e esses casos tornam as coisas mais complexas — diz Tanuri.

Ele e sua equipe souberam dos casos em Olinda graças a uma iniciativa de Alan Menezes, mestrando em ciências farmacêuticas da UFRJ. A mãe de Alan adoeceu duas vezes, supostamente de zika. Outros parentes e vizinhos também caíram doentes. Todos sofrem com as dores e o desconhecimento.

— Li a respeito das pesquisas do professor Tanuri e o procurei. Estamos procupados porque ninguém sabe que doença é essa. Sobram mosquitos nos terrenos abandonados. A situação é calamitosa. É nosso dever colaborar — frisa Menezes. Tanuri se preocupa com o que viu em Olinda: — Fiquei assustado com a situação lá. Não sabemos quantos casos são de reincidência, de coinfecção ou de infecção em sequência (a pessoa contraiu um vírus e depois outro). Além disso, o zika parece estar se manifestando de forma diferente. E há muito mosquito, isso tem que ser combatido — diz Tanuri.

Um dos casos já analisados pela UFRJ é o do estudante Álvaro Paiva Soares, de 15 anos. Ele teve o zika identificado na urina. Já não apresenta sintomas, mas sofreu com estes duas vezes. A primeira no meio do ano passado.

— Agora estou bem. Mas no início de janeiro a doença voltou e muito pior. Fiquei mal, com muita dor e todo pintado — conta Álvaro.

O teste de PCR revelou que o zika continua em sua urina. Sua avó Eclair de Campos Soares, de 76 anos, está doente há 15 dias. Ela anda com dificuldade, e as articulações estão inchadas.

— Tive dengue nos anos 90 e não foi assim. Agora dói muito mais. As pragas do Egito não são nada. Esta praga que temos aqui é pior — lamenta.

Álvaro e Eclair moram em frente a Cristóvão, de 49 anos, que se desespera com os dias em que ficará sem trabalhar:

— Sou vendedor, trabalho na rua. Se não ando, não ganho dinheiro. Aqui está todo mundo doente. Há terrenos abandonados no bairro, os mosquitos vêm de lá.

Os terrenos ficam próximo a uma fábrica fechada e repleta de detritos. Perto deles mora a advogada Tânia Sandrini, de 64 anos. Ela adoeceu em 16 de fevereiro, ficou duas semanas sem sair de casa e ainda não se livrou das dores.

— Não consigo subir escadas direito. Perdi a firmeza dos tornozelos. Até dirigir está difícil. Mantenho minha casa livre de focos e acho um absurdo ficar doente porque Olinda está infestado por mosquitos — diz.

A alguns quarteirões da casa dela, a doceira Sigria de Azevedo, de 58 anos, se esforça para colocar uma fôrma de bolo no forno.

— Minhas mãos ainda doem. Tenho dois filhos e garanto que a dor no auge da infecção é pior do que a do parto — diz ela.

VINTE DIAS COM DORES

Sigria ficou mal pela primeira vez em 22 de janeiro. Passou 20 dias com dores. Melhorou por dois dias, e os problemas voltaram. Está melhor agora, mas continua com inchaço. O marido e um dos filhos também adoeceram.

Vizinho de Sigria, José Luiz Ferreira, de 57 anos, ficou doente no carnaval. O médico lhe disse que tinha dengue. Há 15 dias piorou. Desta vez, foi ao Posto de Saúde Nova Olinda. Lá ouviu que tinha chicungunha. A enteada, Bárbara, teve diagnóstico igual. A neta de 9 anos, o de zika. A mulher de José Luiz e o enteado foram informados de que contraíram dengue.

A poucos metros deles, mora Maria Madalena Lima de Souza. Grávida de quatro meses e com dores nas articulações, ela procurou um médico. E ouviu que não tinha nada: — Disseram que era da gravidez. O chefe da assessoria de imprensa da prefeitura de Nilópolis, Marcio Ferreira, informa que o município tem feito o controle dos focos. Mas que não pode recolher carros abandonados — um problema na cidade —, apenas multar os proprietários.

_______________________________________________________________________________________________________

Corte de metade do orçamento da Faperj ameaça pesquisas sobre vírus

Proposta que prevê redução de recursos será votada na Assembleia Legislativa
 

Inicialmente dedicado ao estudo da Aids, o Laboratório de Virologia Molecular da UFRJ agora direciona seus esforços para o zika. Os pedidos de análises se avolumam e os cientista se desesperam. De garantido no mundo de incertezas do zika, eles só sabem uma coisa: interromperão as pesquisas sobre o vírus nos próximos dias por falta de recursos. Testes de centenas de pacientes do Rio aguardam na fila de análises. Por trás de cada uma das amostras, pessoas que sofrem, como Eclair, Sigria e José Luiz.

— A situação, que era precária, ficou insustentável. Desde 2007, dependemos da Faperj para comprar insumos. Eles já eram insuficientes e estão prestes a acabar. A Finep não financia pesquisa em universidade desde 2013. O CNPq e a Capes pagam apenas bolsas, e cada vez menos. Só a Faperj segurava as pesquisas. Porém, o corte de metade do orçamento da Faperj, proposto pelo governo estadual, que será votado no dia 16 na Assembleia Legislativa, vai inviabilizar não só a nossa, mas todas as pesquisas no Rio. Não se sabe quase nada sobre o zika. O vírus parece se manifestar de forma diferente em alguns lugares. Não é uniforme em todo o Brasil. Mas, na atual conjuntura, vamos continuar no escuro — salienta Amílcar Tanuri, que é coordenador-geral da Rede Zika da Faperj.

 

UM ÚNICO TESTE CUSTA R$ 200

O laboratório emprega todos os recursos que dispõe. Mas por enquanto os cientistas contam apenas com o exame de PCR, nem sempre capaz de identificar um caso. Um teste sorológico específico e confiável não existe.

Renato Santana, professor de virologia da UFRJ e um dos coordenadores da Rede Zika da UFRJ, diz que a coinfecção é possível em lugares onde a população esteja muito exposta ao mosquito:

— Na origem de tudo isso está a falta de saneamento básico dos lugares mais atingidos. Em situações assim, você não pode descartar que uma pessoa tenha pego um vírus e depois outro. A população está vulnerável. E não há nada que possa fazer em casa, se não há esgoto e sobram terrenos abandonados. Não é à toa que os mais pobres são os mais atingidos.

Segundo Santana, estudos sugerem que a infecção pelo zika aumenta a inflamação no organismo. Isso poderia causar uma espécie de reativação da doença em algumas pessoas. Santana disse que a ideia da UFRJ era abrir seus laboratórios à comunidade, mas, com a interrupção dos estudos por falta de insumos, não será possível testar nada. Um teste custa cerca de R$ 200. Para uma pesquisa inicial em Olinda são necessárias mais de 100 análises.

A professora de virologia Monica Arruda, do mesmo grupo de pesquisa da UFRJ, observa que o caso de uma funcionária do laboratório mostrou que o zika tem mecanismo de ação mais misterioso do que o imaginado:

— Ela achou que tinha um problema respiratório. Mas depois surgiram dores e inchaço nas articulações. Testamos a urina dela e encontramos o zika. O teste indicou que a fase de infecção aguda tinha passado há semanas. Isso indica que, em alguns casos, o período de maior atividade viral pode passar despercebido, e os sintomas mais graves serem ativados por mecanismos que ainda desconhecemos.