O Estado de São Paulo, n. 44701, 07/03/2016. Economia, p. B1

Uma Belo Monte à espera de comprador

Renée Pereira

Um ano depois de enfrentar uma grave crise hídrica e financeira, o setor elétrico brasileiro vive uma forte onda de ativos à venda. Pelo menos dez grandes grupos nacionais e estrangeiros, que incluem Duke Energy, Odebrecht, Petrobrás, Abengoa e Queiroz Galvão, tentam encontrar compradores para usinas, parques eólicos, linhas de transmissão e comercializadoras. Apenas na área de geração, a capacidade instalada à venda equivale a quase uma Hidrelétrica de Belo Monte, de 11.233 megawatts (MW).

O movimento de venda no setor é reflexo de uma conjunção de fatores. Um deles é a fragilidade da atividade econômica, que no ano passado recuou 3,8% e ajudou a derrubar o consumo de energia em 2,1%. Além disso, o crédito se tornou mais restritivo e caro, especialmente para empresas envolvidas na Operação Lava Jato, que ficaram com caixa debilitado para fazer frente a investimentos. Outro fator envolve a saúde financeira de companhias estrangeiras em suas matrizes, o que tem obrigado as subsidiárias a diminuir suas estruturas.

Apesar do cenário econômico e político desfavorável, consultores e advogados afirmam que há interessados nas ofertas do setor. Com a desvalorização do real, os ativos brasileiros ficaram muito baratos para os estrangeiros, que estão em negociação com várias empresas. Alguns já atuam no Brasil, como é o caso da canadense Brookfield, da franco-belga Engie (ex-GDF Suez), da italiana Enel, da francesa EDF e das chinesas State Gride e China Three Gorges (CTG). Outros ainda estão sondando o mercado brasileiro e avaliando as possibilidades de entrada no País.

Com tantos ativos à venda e incertezas em relação ao futuro econômico, quem tem dinheiro e disposição para investir no Brasil está em vantagem. De um lado, os vendedores têm feito inúmeras exigências e jogado o valor dos ativos ainda mais pra baixo. Do outro, boa parte dos vendedores precisa fazer caixa com urgência para honrar compromissos. Um exemplo é a espanhola Abengoa, que entrou com pedido de recuperação judicial aqui e na Espanha.

A empresa, que corre o risco de ter concessões cassadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), pede R$ 10 bilhões pelas linhas de transmissão em operação ou em construção no Brasil. Segundo fontes do setor, a Brookfield – que não quis comentar o assunto – estaria disposta a pagar metade do valor. Em nota, a Abengoa diz que tem feito esforços para minimizar os impactos da suspensão de alguns dos projetos em construção e alcançar uma solução para todas as partes.

 

Reforço de caixa. Entre as empresas envolvidas na Operação Lava Jato, a venda de ativos é um dos caminhos para superar as dificuldades na obtenção de crédito. Na Odebrecht, o dinheiro arrecadado com a venda do Complexo Eólico de Senades, no Rio Grande do Sul, deverá ser usado para reforçar outros negócios da companhia.

Em nota, a empresa afirmou que, com a entrada em operação do empreendimento, a empresa decidiu “reciclar esses ativos por meio de um processo competitivo, liderado pelo BTG, usando os recursos para aplicação em outras oportunidades da organização”. Com a expansão da Lava Jato e a prisão do presidente da companhia, Marcelo Odebrecht, a empresa tem tido dificuldade para fechar novos financiamentos e tocar projetos importantes.

Outra construtora que procura parceiros para sua unidade de energia é a Queiroz Galvão. Desde o ano passado, a empresa tenta negociar a entrada de capital de terceiros ou a venda de quatro parques eólicos em operação e dois em construção, além de quatro hidrelétricas e duas térmicas. O valor total dos ativos beira os R$ 2 bilhões, segundo fontes do setor. Até agora, no entanto, não apareceu nenhum investidor disposto a levar o pacote fechado. A negociação mais recente envolve apenas as hidrelétricas, disse uma fonte. A empresa não quis comentar o assunto.

Segundo o advogado Raphael Gomes, sócio da Demarest Advogados, a área de energias renováveis tem recebido bastante procura. Alguns projetos de eólicas, que foram negociados em leilões, mas não tiveram as construções iniciadas, estão em negociações avançadas. Além de americanos, alemães e espanhóis também estão de olho nos empreendimentos.

Recentemente, a Casa dos Ventos, empresa que desenvolve e constrói projetos eólicos, vendeu dois deles à Cubico Sustainable Investments por R$ 2 bilhões. A Cubico é formada pelo Santander, pelo fundo de pensão dos professores de Ontário e o administrador de fundos de pensão do Canadá (Public Sector Pension Investment Board).

A Renova, um dos maiores grupos de energia eólica do País, deve aproveitar o apetite desses investidores para se desfazer de alguns ativos e reforçar o caixa. Em dezembro, a empresa rescindiu um contrato de US$ 250 milhões com a americana SunEdison, em dificuldade financeira nos Estados Unidos. As duas empresas fariam uma usina solar de 1.000 MW.

Com o fim da parceria, a Renova prepara algumas medidas para contornar a situação, como o adiamento de projetos, renegociação de dívidas, emissão de debêntures e outros tipos de operação para fazer caixa. Sobre a venda de ativos, a empresa não quis se pronunciar.

 

Térmicas. O advogado da L.O. Baptista, Guilherme Schmidt, especialista na área de energia, afirma que as termoelétricas também têm movimentado o mercado. Só a Petrobrás tem 6,15 mil MW de energia térmica à venda. Além dos chineses, investidores ingleses também estão sondando os ativos da estatal. “As térmicas são boas e atraentes para investidores que estão dispostos a correr um risco um pouco maior (no Brasil, as térmicas não operam o tempo todo e têm regras diferentes de outros países).”

O único entrave, por enquanto, tem sido os prazos estabelecidos pela estatal para fazer due diligence – processo de investigação e auditoria dos ativos à venda. “A quantidade e complexidade dos ativos exige um tempo maior de análise”, completa Raphael Gomes, da Demarest, que tem clientes interessados nas térmicas da Petrobrás.

Outra estatal que espera levantar recursos com a venda de ativos é a Eletrobrás. A companhia aguarda liberação do Ministério de Minas e Energia para vender a distribuidora de Goiás, Celg. A concessionária, que atende 237 municípios, estaria no radar da chinesa State Grid e da Enel. As outras seis distribuidoras da estatal, embora representem perdas de R$ 2 bilhões por ano, ainda não tiveram autorização para privatização.

 

Oportunidade

“As térmicas são boas e atraentes para investidores que estão dispostos a correr um risco um pouco maior.” Guilherme Schmidt ADVOGADO DA L.O. BAPTISTA, ESPECIALISTA NO SETOR DE ENERGIA

 

EM BUSCA DE INVESTIDORES

 

ABENGOA

Cerca de 10 mil km de linhas de transmissão, sendo 3,5 mil km de linhas já construídas e 6,3 mil km em construção

 

ELETROBRÁS

● Celg, distribuidora de energia que atende 237 municípios no Estado de Goiás

● Há intenção de privatizar outras seis distribuidoras administradas pela Eletrobrás: Cepisa (Piauí), Ceal (Alagoas), Eletroacre (Acre), Ceron (Rondônia), Boa Vista e Amazonas Distribuidora de Energia (Amazonas)

 

RENOVA

Terá de vender alguns ativos, mas quer se desfazer apenas de projetos que ainda não foram construídos

 

PETROBRÁS

Parque térmico da estatal, de 6.152 MW, pode vendido.As principais são:

● Térmica Leonel Brizola (1.058 MW)

● Mario Lago (923 MW)

● Barbosa Lima (386 MW)

● Jesus Soares Pereira (323 MW)

● Termoceará (220 MW)

 

DUKE ENERGY

● 8 hidrelétricas

● 2 PCHs

 

QUEIROZ GALVÃO

● 4 parques eólicos em operação

● 2 parques eólicos em construção

● 4 hidrelétricas e PCHs

● 2 térmicas

 

ODEBRECHT

● 1 parque eólico em Rio Grande, no Rio Grande do Sul

 

IMPSA

● Energimp, empresa que desenvolve e opera parques eólicos

 

COMERCIALIZADORAS

 

● Investidores estão de olho em três comercializadoras no País

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Incerteza regulatória atrapalha negociações

As incertezas regulatórias e a forte interferência política têm sido um ponto negativo nas negociações envolvendo ativos do setor elétrico. Entender os desdobramentos e os motivos que levaram o governo a editara MP 579, que desarrumou o segmento desde 2012, por exemplo, não tem sido uma tarefa muito fácil para investidores que a inda não estão no País. Segundo relatos de advogados e fontes próximas a empresas, alguns já desistiram de fechar negócios por causa das regras do setor. “Eles questionam sobre o fim das concessões e sobre as responsabilidades no caso de invasão de obras (como as que ocorrem na Hidrelétrica de Belo Monte)”, afirma Raphael Gomes, da Demarest Advogados. Quando ouvem as explicações, diz ele, recuam imediatamente.

Num setor estratégico, que exige investimentos altos e previsibilidade, os últimos anos têm sido de intensa instabilidade regulatória. As incertezas têm efeito direto na qualidade de crédito para o setor e na lucratividade das empresas, que tem caído. Não por acaso, a multinacional americana Duke Energy incluiu o Brasil na lista de ativos à venda na América Latina.

Desde a privatização em 1999, a empresa já investiu US$ 1,5 bilhão no País. A geradora tem a concessão de oito hidrelétricas e duas pequenas centrais hidrelétricas (PCH).

Na avaliação do diretor sênior da agência de classificação de risco Fitch Rating, Mauro Storino, o maior risco dessa onda de investimento é o de ativos pararem nas mãos de empresas que não conhecem o setor elétrico brasileiro. Segundo ele, todo segmento que tem um grau de regulação requer de quem está entrando no mercado um entendimento maior sobre o assunto.

“Já tivemos casos de empresas estrangeiras que compraram ativos no Brasil e no primeiro problema foram embora e deixaram o ativo aqui”, diz ele, citando a americana PPL, que em 2000 comprou a distribuidora Cemar, no Maranhão. Hoje a empresa é administrada pela Equatorial.

Comercialização. Outra área que vem sendo sondada pelos investidores estrangeiros e que exige um grau elevado de conhecimento do setor elétrico é o de comercialização de energia.

Nos últimos anos, com o avanço do mercado livre (em que os consumidores escolhem de quem vão comprar a energia), essas empresas ganharam importância relevante e cresceram suas estruturas. Hoje algumas podem valer até R$ 1 bilhão.

Segundo fontes, três comercializadoras estão no radar dos investidores americanos. Uma delas é a comercializadora do BTG, atualmente a maior do País. A instituição, no entanto, afirma que o ativo não está à venda, pois é bastante rentável para o grupo. /R.P.

 

Dúvida

“Eles (os investidores) questionam sobre o fim das concessões e sobre as responsabilidades no caso de invasão de obras”

Raphael Gomes

 

SÓCIO DO DEMAREST ADVOGADOS