Correio braziliense, n. 19278, 07/03/2016. Economia, p. 6

Licença para gastar

CONJUNTURA » Receita subiu 398,8% entre 2000 e 2015, enquanto gastos públicos aumentaram 582,9%. Conquista do grau de investimento e crise global de 2008 facilitaram a irresponsabilidade do governo, que jogou o país na recessão
Por: Rosana Hessel

 

ROSANA HESSEL

 

Ninguém sabe ao certo quando o país vai sair do atoleiro. Mas, quanto à principal razão para ter chegado aqui, a resposta é fácil: o descontrole fiscal. O desequilíbrio nas contas públicas vem sendo construído com esmero nos últimos anos pelo governo. As autoridades deixaram de lado a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), uma das conquistas da estabilidade econômica proporcionada pelo Plano Real.
Dados do Tesouro Nacional mostram que, entre 2000 e 2015, os gastos do governo central aumentaram muito acima do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e das receitas. Em 15 anos, o PIB nominal avançou 427,6% (veja quadro ao lado), mais que a inflação do período, de 182%. A receita administrada pelo Tesouro subiu 398,8% e as despesas obrigatórias saltaram 582,9%, algo inconcebível para qualquer governo responsável.
Entre 2000 e 2008, no ano em que o Brasil conquistou o grau de investimento, o ritmo de aumento da despesa era mais lento, de 192%. Isso sinaliza que o selo de bom pagador acabou dando uma certa licença para o governo gastar desenfreadamente, primeiro na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva e depois, na de Dilma Rousseff. “Lula soube surfar com o grau de investimento. Dilma, não. Aumentou a despesa achando que o país ia se tornar uma potência e que a receita ia crescer junto, mas isso não aconteceu”, comenta o economista Alexandre Cabral, da consultoria NeoValue.

Cheque especial
Há vários anos, o Brasil está no cheque especial. A receita não consegue cobrir o avanço absurdo da despesa e, por isso, a dívida do governo aumenta em ritmo acelerado, um dos motivos para a perda do grau de investimento do país. “As agências de rating rebaixaram o país quando viram o governo sem compromisso firme com resultados fiscais”, explica o economista e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), José Roberto Afonso, um dos autores da LFR.
Ele lamenta que, entre 2000 e 2002, quando ainda era oposição, o PT foi contra a criação do conselho de gestão fiscal e isso fez com que houvesse “um inegável relaxamento com o cumprimento das regras”. As práticas foram condenadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no ano passado, obrigando o governo a pagar as “pedaladas fiscais”.
A falta de controle nas contas públicas se refletiu diretamente nos juros, como prova do descrédito do governo na praça. Em 2006, a conta de juros era 7,6% do PIB e, em janeiro, ficou em 11,25%, conforme dados do Banco Central (BC). E o resultado disso foi a explosão na dívida pública. Passou de 55,5% do PIB, em 2006, para 67%, em janeiro deste ano, de acordo com dados do BC. Mas esses números são piores para entidades como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e para a economista Monica De Bolle, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics, em Washington. Ela estima que a dívida bruta chegará a 81,8% do PIB, até o fim deste ano, e a 91,3%, em 2018, se nada for feito para controlar o aumento dos gastos públicos.
O economista e especialista em contas públicas Mansueto Almeida alerta para os riscos de a dívida bruta encostar em 80% do PIB, o dobro da média dos emergentes, de 40%, pelos cálculos do FMI. “Países desenvolvidos têm até 90%, mas o Brasil não pode se comparar . Uma dívida nesse patamar com os juros daqui é insustentável”, alerta.

Inflação
Monica avisa que o problema maior de uma dívida tão elevada não é a solvência, pois a maior parte dela é interna, portanto, o governo emitirá mais títulos, com prazos cada vez mais curtos, o que vai gerar mais inflação. Para ela, a carestia vai subir mais e ficar acima de dois dígitos, entre 10% e 20%, até 2018.
O economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor do BC, também acredita que o governo vai resolver o problema do calote da dívida pública com mais inflação. “A política atual não tem como mudar por uma série de fatores. O governo está acuado, a presidente não tem respaldo político e não tem competência nem capacidade de resposta para que o investimento, caindo há 10 trimestres seguidos, volte a crescer”, avisa. “Estamos longe do fundo do poço e o PIB ainda tem muito mais para cair”, afirma.
Além da euforia do grau de investimento, a crise financeira de 2008 impulsionou os gastos do governo, que adotou medidas anticíclicas (como redução de impostos e estímulo ao crédito), e piorou as contas públicas. “O problema foi que não houve freio nos estímulos, mesmo quando a economia estava indo bem. O governo acreditava naquilo e não segurou o gasto corrente”, destaca Schwartsman.
Na avaliação de Mansueto Almeida, esse descontrole dos gastos públicos deve muito aos reajustes do salário-mínimo, base de muitas despesas obrigatórias, como benefícios e pensões. “Em 10 anos, o mínimo teve aumento real de 100% e puxou a maioria das despesas, principalmente, a previdenciária, que foi a que mais cresceu nos últimos anos”, explica. De acordo com dados do Tesouro, de 2000 a 2015, os gastos previdenciários saltaram 582,9%.
Schwartsman diz  que a reforma previdenciária é importante  para sinalizar a sustentabilidade da despesa. Mas ele acredita que o atual governo, enfraquecido, não conseguirá promovê-la.
Mesmo a despesa com pessoal, que está em 4% do PIB e não teve aumento como as demais, é considerada elevada pelo economista e especialista em contas públicas Felipe Salto. “O investimento do governo está abaixo de 1%”, critica. “O governo vai ter que cortar gasto obrigatório daqui para frente, conter reajuste do funcionalismo, renovar contratos administrativos”, afirma.

Frouxidão
Junto com a proposta do teto para o gasto, o ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, enviará ao Congresso neste mês a proposta de banda fiscal, permitindo um abatimento na meta de até R$ 84,2 bilhões por frustração nas receitas. Isso permitiria um deficit primário de até 1% do PIB ou R$ 60,2 bilhões. A meta atual é de superavit primário de 0,5% do PIB, ou R$ 30,5 bilhões, para todo o setor público. A ideia da banda é criticada por analistas de mercado.