Correio braziliense, n. 19301, 30/03/2016. Cidades, p. 23

NO ENTORNO, JOVEM E NEGRO SÃO MAIS VULNERÁVEIS

O Atlas da violência 2016 mostra que a região próxima ao DF teve, em 2014, uma taxa de homicídios 78,1% maior que a do Brasil. Em Águas Lindas, a chance de um rapaz preto morrer é 15,6 vezes maior que a de um outro tom de pele
Por: Rafael Campos

Rafael Campos

 

O serralheiro Dilson Barbosa dos Santos nasceu às 5h de 3 de março de 1959. Às 5h de 3 de março de 1993, era vez de o filho Adilson Barbosa dos Santos chegar ao mundo. “Está marcado no registro dele e no meu também.” A coincidência no calendário familiar deixou de ser comemorada há dois anos, quando Adilson, 20 anos, foi assassinado com seis tiros em frente a uma lanchonete de Águas Lindas (GO). O crime, de acordo com a Polícia Civil de Goiás, teria sido motivado por ciúmes: o acusado acreditava que o jovem estava dando em cima da namorada dele.

“Para você ter ideia de como minha vida mudou: primeiro, mataram meu menino. Em um mês, meu pai morreu. Depois de quatro dias, morreu meu irmão caçula. E, com três meses, minha mulher morreu de AVC”, conta um resignado Dilson. Antes um religioso ferrenho, ele garante que a injustiça sentida pela morte do filho fez com que ele decidisse abandonar a igreja. “Depois que ele se foi, todos os meus filhos se desviaram do caminho de Deus. Convivi com a violência minha vida toda. Em São Paulo, passava por cima de cadáver para ir trabalhar. Mas nunca achei que isso chegaria à minha família.” A história do serralheiro causa comoção, mas não é preciso muito esforço para ouvir relatos parecidos no Entorno do Distrito Federal.

De acordo com o Atlas da violência 2016, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) na semana passada, a região, composta por 22 municípios, teve uma taxa de homicídios em 2014 de 51,85 mortes para cada 100 mil habitantes — 78,1% maior que a do Brasil no mesmo período, que foi de 29,1. E Águas Lindas é a cidade na qual a possibilidade de um jovem negro ser assassinado é maior: de acordo com o estudo Jovens negros e não negros: mortalidade por causas externas na Área Metropolitana de Brasília, publicado pela Codeplan, eles estão 15,6 vezes mais exposto ao homicídio que jovens de outros tons de pele.

As estatísticas endurecem a realidade das famílias que perderam entes queridos. A dona de casa Hellen Priscila Santos Oliveira, 29, diz que há muito tempo não tem medo de viver em Águas Lindas, já que a expectativa que fica é de uma situação que não mudará. “A vida me tornou uma pessoa de coração muito fechado e, depois da morte do meu irmão, fiquei pior. Agora, só tenho a tristeza de olhar para minha mãe e não ver mais a alegria que a gente sempre via nela.” Ela se lembra exatamente da noite do assassinato de Jhonatas Abraão Santos Oliveira. “Eu estava vendo a novela e ouvi os cinco tiros. Na mesma hora, tive certeza: era ele quem tinha morrido.”

Uma prima chegou para avisá-la do que havia acontecido, mas Hellen a interrompeu, garantindo que já sabia a verdade, mesmo antes de alguém contar a ela. “Mesmo assim, quando cheguei, vi a pior cena da minha vida: ele no chão, sangrando, e eu falando que ele deveria ter saído daqui. Sei que ele fez escolhas erradas, mas a família sempre sente muita dor.” O jovem morreu aos 23 anos, alvejado por cinco tiros em um crime que, de acordo com a polícia, teve como motivação um ajuste de contas por disputas relacionadas ao tráfico de drogas — razão que, para Hellen, explica o porquê do descaso da Justiça em relação a Jhonatas. “Ele ficou lá das 22h30 até as 4h, e ninguém se importou. Se a gente tivesse mais oportunidades, a realidade seria diferente, não só para o meu irmão, mas para todos os jovens dessa cidade. Eu tenho um filho entrando na adolescência. O que esse lugar tem oferecer a ele? Aqui, para os jovens, só existem esquina e droga.”

 

Discriminação na pele

A opinião da dona de casa é reforçada pelos brasileiros. No relatório Violência contra a juventude negra, apresentado pelo DataSenado em novembro do ano passado, 53% dos entrevistados concordaram com a frase “A morte violenta de um jovem negro choca menos a sociedade do que a morte violenta de um jovem branco”. Entre os entrevistados que se declararam pretos, 88% garantiram que a cor da pele afeta muito a vida. No mesmo grupo, 65% afirmaram já ter sofrido discriminação racial.

E o efeito da cor vitimiza não somente aqueles em situação de risco. A deputada federal Rosângela Gomes (PRB/RJ), relatora da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Violência contra Jovens Negros e Pobres, lembra quando, comprando um sofá, ouviu de uma mulher: “Mocinha, quanto custa esse aqui?”. “Nada contra o trabalho, que é digno. Mas isso mostra o quanto a população vê o negro como um povo de segunda categoria. Até hoje, quando eu entro em alguns lugares, tenho que me autoafirmar, senão sou confundida com uma garçonete ou uma gerente. Para uma parcela considerável da população, não faço parte do público que pode comprar um sofá; só vendê-lo para os que entrarem ali”, reclama.

O rapper Júnior Bahia, que trabalha com a população jovem de Águas Lindas, acredita que ser negro é um fato que torna a juventude ainda mais exposta na cidade e se diz impressionado com o poder do crime em tirar vidas. “Você vê a morte todo dia. Às vezes, ela acontece ao seu lado. Estive no cemitério há poucos dias e vi o quanto de covas eram de jovens. Um ou outro que escapa. Por isso que a gente faz esse trabalho no rap, para tentar conscientizar o jovem de que o crime só tem dois caminhos: a morte ou a cadeia.”

Para Hellen Priscila, a sensação é de que só há justiça se ela for feita com as próprias mãos. “Mas não faria isso, porque tenho ainda família. Só que a vontade existe. Meu irmão era meu parceiro, cuidava de mim. Ver a forma como minha mãe está hoje me mata todos os dias. E isso ainda piora porque continuo vendo a cara das pessoas que fizeram isso.”

 

Três perguntas para Julio Jacobo Waiselfisz, autor do Mapa da violência, série de pesquisas elaboradas desde 1998, que analisa as formas de violência no Brasil.

 

A cor ainda é uma razão determinante para o alto índice de assassinatos. Isso é reflexo apenas do racismo da sociedade brasileira?

Ainda é determinante. E o que é mais preocupante ainda: sua incidência vem crescendo ao longo da última década. Se as taxas de homicídios de brancos caíram 25% a partir de 2002, os índices de homicídio da população negra, principalmente a de jovens, cresceram acima de 15%.

 

Na sua opinião, por que a mortalidade entre os jovens é tão alta no Brasil?

Os jovens, na atualidade, constituem o setor ativo mais vulnerável de nossa sociedade, pouco ou nada contemplados pelas políticas sociais. A mais importante delas, a educação, tem se evidenciado deficitária para esse setor. Assim, quanto ao ensino médio, pouco temos avançado nos últimos anos. Segundo o Censo Educacional do MEC, a matrícula desse nível de ensino permanece estacionada nas últimas duas décadas. Também o Sistema de Avaliação do Ensino Básico, que aplica testes de português e matemáticas a uma amostra de alunos do terceiro ano do ensino médio, evidencia que a proficiência dos alunos permanece estagnada.

 

A população brasileira está envelhecendo. De acordo com as pesquisas feitas pelo senhor, a mortalidade de jovens já gera um impacto negativo na economia do Brasil? Por quê?

Não só na economia. O BID estima que, no Brasil, os custos da violência, incluindo aí os homicídios, chegam a perto de 10% do PIB. Ainda mais, morrem jovens para os quais a sociedade financiou educação, saúde e outros benefícios sociais. Mas, acima do impacto econômico, temos o elevado impacto humano. No Brasil, nos últimos anos, morrem mais pessoas vítimas de homicídio do que em países com amplos conflitos armados.

 

Radiografia

Taxa de homicídio no Entorno:

 

51,85 para cada

100 mil habitantes

 

Taxa de homicídio no Brasil:

29,1 para cada

100 mil habitantes

 

A taxa do Entorno

é 78,1% maior

Fonte: Atlas da violência 2016

 

 

71% dos brasileiros acham que os negros são as maiores vítimas de violência no Brasil

Para os pesquisados, as principais vítimas da violência são:

 

6% brancos

3% indígenas

2% asiáticos

17% independe de cor ou raça

1% não sabe ou não respondeu

37% dos brasileiros reconhecem que as principais vítimas de violência no país têm entre 13 e 24 anos

 

Para os pesquisados, a faixa de idade das principais vítimas da violência no Brasil são:

9% idosos com 60 anos ou mais

6% adultos de 25 a 59 anos

27% adolescentes de 13 até 17 anos

17% crianças até 12 anos

4% não sabem ou não responderam