Título: Duas décadas sem Estado
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Fonte: Correio Braziliense, 05/10/2011, Mundo, p. 18

Nos almanaques de geografia política, a Somália é o exemplo perfeito ¿ clássico e atual ¿ do que é um Estado falido. Ainda dois meses atrás, uma força multinacional da União Africana celebrava a retirada da milícia islâmica Al-Shabab da capital, Mogadíscio. O atentado de ontem serviu como alerta de que resta muito até que algum tipo de ordem seja constituída nesse país de interseções estratégicas: entre África e Península Arábica, entre Mar Vermelho e Mar da Arábia, entre África muçulmana e África Subsaariana.

Se há uma imagem que resume o diagnóstico, é a do corpo de um soldado americano sendo arrastado pelas ruas de Mogadíscio, em 1992, por milicianos que acabavam de abater um helicóptero militar. O país estava mergulhado na guerra civil e uma força dos EUA tentava dar apoio a operações humanitárias, mas acabou emaranhada na dinâmica do conflito. O então presidente, Bill Clinton, ordenou a saída do contingente e o país ficou à mercê dos "senhores da guerra", que um ano antes haviam derrubado o presidente Siad Barre ¿ o último chefe de Estado que o país teve.

Desde 1991, foram feitas 14 tentativas, até aqui infrutíferas, de restabelecer o poder central. O governo transitório formado em 2004 enfrenta há cinco anos a insurgência dos shababi (rapazes). Depois de terem sido expulsos da capital, para retornar com apoio da Etiópia ¿ adversária em um conflito enquadrado na Guerra Fria, nos anos 1970 e 1980 ¿, os novos governantes parecem encurralados pelos extremistas desde a saída das tropas etíopes, no início de 2009.

A permanência da guerra civil, coincidindo com mais uma seca, castiga os somalis com outro surto epidêmico de fome. Centenas de milhares de civis, refugiados no vizinho Quênia, são destino de uma campanha internacional de ajuda humanitária lançada pela ONU, que alerta para o risco de morte em massa, em especial das crianças.