Título: Recado do terror
Autor:
Fonte: Correio Braziliense, 05/10/2011, Mundo, p. 18

Milícia islâmica detona caminhão-bomba no coração da capital, mata ao menos 70 pessoas e expõe a fragilidade do governo de transição apoiado por tropas da União Africana. Especialistas temem onda de ataquesNotíciaGráfico

Não bastasse a fome que castiga milhões de somalis, o terror levou ontem mais sofrimento a essa pobre nação do Chifre da África. Naquele que foi considerado o pior ataque terrorista na Somália desde 2007, um caminhão-bomba explodiu no coração da capital, Mogadíscio, e matou ao menos 70 pessoas, com dezenas mais hospitalizadas. A ação foi imediatamente reivindicada pelo grupo extremista islâmico Al-Shabab, que em agosto havia se retirado da cidade. O atentado não surpreendeu analistas ouvidos pelo Correio e pode ser o início de uma sequência de atos de violência, com potencial para aumentar a instabilidade política e tornar ainda mais difícil a chegada de ajuda humanitária.

O caminhão foi dirigido por um suicida até a frente ao Ministério da Educação, próximo ao palácio presidencial, e explodiu no momento em que dezenas de estudantes faziam fila na entrada do edifício para receber uma bolsa de estudos oferecida pelo governo turco. O objetivo dos terroristas era atingir um complexo ministerial em um local conhecido como K4 (quilômetro 4), um dos principais cruzamentos da cidade, que leva ao aeroporto e às instalações da Missão da União Africana na Somália (Amison). "Estou extremamente chocado e entristecido por esse ato cruel e desumano de violência contra os mais vulneráveis de nossa sociedade", disse o presidente, Sharif Sheikh Ahmed.

Em agosto, uma ofensiva do governo de transição somali, apoiado pelas tropas africanas, obrigou o Al-Shabab a abandonar a capital. A facção insurgente acusa a coalizão governante de "servir aos interesses do Ocidente" no país.

O diretor do programa para o Chifre da África no respeitado instituto de análise International Crisis Group (ICG), Ej Hogendoorn, explicou, em entrevista ao Correio, que o Al-Shabab nunca deixou realmente a capital, apenas abandonou alguns setores da cidade. Segundo ele, o recado dos insurgentes é de que, por saberem que não podem enfrentar as tropas africanas em um combate convencional, usarão ataques terroristas. "Acho que esse foi, provavelmente, o primeiro de muitos ataques que ainda poderão ocorrer no país contra alvos importantes do governo de transição e da missão africana."

O especialista norueguês Stig Jarle Hansen, autor do livro The borders of Islam (As fronteiras do islã, em tradução livre), afirmou à reportagem que o atentado demonstrou a capacidade da milícia islâmica para continuar atacando dentro de Mogadíscio. "Esse ato vai provocar mais tensão entre o governo transitório e o Al-Shabab e tornará mais difícil o transporte da ajuda humanitária pelo país", disse.

A Somália foi atingida por uma seca extrema que, combinada ao conflito armado, tem levado milhares de pessoas a fugir para nações vizinhas. A tensão, iniciada a partir de confrontos tribais, evoluiu para uma guerra civil que praticamente impossibilita a chegada de auxílio aos civis.

Al-Qaeda Hogendoorn explica que, para permitir que funcionários das agências humanitárias levem suprimentos e ajuda em segurança a algumas regiões, é preciso negociar e chegar a um acordo com líderes locais. No país, há vários grupos armados, mas o Al-Shabab é o mais forte deles. O problema atual, segundo o analista, é que há também uma divisão interna e é difícil saber quem realmente está no comando do grupo.

O Al-Shabab não recebe ordens, mas está ligado à rede terrorista Al-Qaeda, principalmente do Afeganistão e do Paquistão. "Eles servem muito mais à causa própria e se aproximam da Al-Qaeda porque apoiam a mesma ideia de uma jihad, de impor uma visão mais rígida do islã não apenas à Somália, mas a toda a região", ponderou Hogendoorn.