O globo, n. 30197, 10/04/2016. País, p. 5

Tribunal de exceção

Não existe crime que tenha sido praticado pela presidente Dilma. Sem crime de responsabilidade, impeachment é golpe. Dilma é pessoa honesta, dedicou sua vida à construção da cidadania do povo brasileiro

Tramitam na Câmara dos Deputados o processo de impeachment da presidenta da República, Dilma Rousseff, e o processo de cassação do presidente da Câmara, Eduardo Cunha.

Há uma assimetria entre os dois processos. No primeiro deles, verifica-se uma profusão de atropelos regimentais. Num deles, o relatório do deputado Jovair Arantes considerou fatos anteriores a 2015, alheios ao atual mandato, sem que fosse garantido à defesa o direito de impugnar tais preliminares.

Já no processo que tramita contra Eduardo Cunha no Conselho de Ética, os prazos foram refeitos duas vezes. Houve mudança de relator, e o advogado pôde exercer amplo direito de defesa, lançando mão de graves manobras a fim de impedir o andamento do processo.

A assimetria entre os dois processos tem origem na condução dos trabalhos. Não por acaso, o pedido de impeachment foi aceito pelo presidente da Câmara no mesmo dia em que o PT decidiu votar pela admissibilidade do processo de cassação de Cunha por corrupção. Réu no Supremo Tribunal Federal e envolvido em denúncias gravíssimas, Eduardo Cunha carece de imparcialidade para julgar a presidenta. E os dois, Jovair Arantes e Cunha, redigiram a quatro mãos o relatório favorável à cassação.

A acusação contra Dilma diz respeito à publicação de seis decretos orçamentários e à concessão de subsídios ao Plano Safra para agricultura familiar. Esses decretos respeitam a Lei Orçamentária Anual, que, no seu artigo 4°, permite a edição de decretos para fins de remanejamento, desde que não firam o superávit primário. Num cenário de contingenciamento, tais decretos tiveram o condão não de aumentar despesas, mas mudar sua natureza.

Todo o procedimento seguiu os padrões que o Estado brasileiro sempre adotou. Os subsídios aos agricultores familiares no Plano Safra foram feitos regularmente, num contrato de prestação de serviços entre o governo e o Banco do Brasil. Não houve operação de crédito, como (mal) entendido pela acusação. Dilma nem sequer atuou nesse contrato, de responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Agrário.

Esta denúncia é desprovida de elementos jurídicos e tem origem no inconformismo daqueles que perderam a eleição em 2014.

Não existe crime que tenha sido praticado pela presidenta Dilma. Sem crime de responsabilidade, impeachment é golpe. Dilma é pessoa honesta, dedicou sua vida à construção da cidadania do povo brasileiro, e sempre pautou sua atividade política por métodos republicanos. Foi eleita com 54 milhões de votos e, agora, tornou-se vítima de uma conspiração, patrocinada por Eduardo Cunha em conluio com Michel Temer. Condenar uma pessoa inocente, por ambição ou vingança, caracteriza um tribunal de exceção, que afronta a Constituição Federal. O difícil momento pelo qual passa a economia do país deve-se a uma conjunção de fatores. Não podemos resolver a crise atacando o valor maior da democracia, que é a soberania popular. Críticas ao governo devem ser feitas, e o momento para substituí-lo é 2018, através do voto. Até lá, o caminho possível para a superação da crise passa pela derrota do impeachment, pela adoção de medidas que viabilizem a retomada do crescimento e da proteção do emprego e, sobretudo, pelo enfrentamento das reformas necessárias, em especial a reforma política.

Uma luz no fim do túnel

As pedaladas fraudaram as contas públicas e esconderam a verdadeira situação fiscal, permitindo que Dilma mentisse na campanha eleitoral, prometendo o que não ia cumprir. Dilma praticou crime de responsabilidade fiscal. A saída deve ser constitucional

Os danos provocados ao Brasil pelo PT e pelo governo Dilma, com a crise política, ética e econômica, são incalculáveis. Mas, nesse caos, é possível ver luz: o país está discutindo, direta ou indiretamente, responsabilidade fiscal, controle do orçamento e a corrupção. A despeito da tensão própria do impeachment, afastar um presidente por crime de responsabilidade será um avanço capaz de promover transformações profundas na gestão pública. Ao ir às ruas defender o impeachment, a sociedade diz não à irresponsabilidade fiscal, à corrupção e ao estelionato eleitoral, causadores da maior crise econômica e política do país.

A duras penas, tomamos consciência de que inflação, recessão, desemprego e caos no serviço público são consequência do descontrole fiscal. Como disse o jurista Miguel Reale Jr, o equilíbrio fiscal é um bem público, pedra angular da economia do país.

As pedaladas fraudaram as contas públicas e esconderam a verdadeira situação fiscal, permitindo que Dilma mentisse na campanha eleitoral, prometendo o que não ia cumprir.

Dilma praticou crimes de responsabilidade fiscal. Abriu créditos suplementares (R$ 2,5 bilhões) sem autorização do Congresso e contratou ilegalmente operações de créditos (R$ 40,25 bilhões em 2014, que viraram R$ 55,6 bilhões em 2015) com bancos públicos e FGTS, crimes previstos na Constituição Federal, na Lei de Responsabilidade Fiscal e na Lei do Impeachment. A saída para a ingovernabilidade crônica e a inépcia de Dilma para liderar uma agenda nacional deve ser constitucional. Com o impeachment, quem assume é o vice-presidente, eleito democraticamente. Não há ruptura e qualquer saída que mude a regra do jogo deve ser descartada.

O afastamento da presidente justifica-se por outros motivos, como a corrupção endêmica no governo. Zelar pela probidade é responsabilidade do governante. Por si só, o caso da refinaria de Pasadena, com prejuízo de R$ 2,9 bilhões para a Petrobras, seria motivo para o afastamento da presidente, no mínimo, por omissão e incapacidade.

O mandato de Dilma terminou sem começar. Quem “governa” o país é Lula, ministro sub judice. A pauta do PT para o país é barrar o impedimento, na base do vale tudo, e proteger Lula da Justiça.

O Brasil tem dois caminhos: adotar a saída do faz de conta, deixando no cargo uma presidente “sem mandato”, ou a institucional, do impeachment. Não há solução mágica. É preciso união de todos, juntar pedaços, recuperar a credibilidade e a governabilidade para o país voltar a crescer com sustentabilidade.