O Estado de São Paulo, n. 44742, 17/04/2016. Política, p. A18

ENTREVISTA - José Eduardo Cardozo

‘Sempre foi feito, não há má-fé’, diz José Eduardo Cardozo, advogado-geral da União
Por: Ricardo Galhardo

 

Para advogado-geral da União, Dilma não cometeu ‘nenhuma ilegalidade’; ele considera ilegítimo eventual governo Temer

 

Ricardo Galhardo

ENVIADO ESPECIAL / BRASÍLIA

 

Um eventual governo do vice-presidente Michel Temer deve ser tratado como ilegítimo. A opinião é do ministro chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), José Eduardo Cardozo. Ex-ministro da Justiça e responsável pela defesa da presidente Dilma Rousseff, Cardozo falou ao Estado dos motivos pelos quais considera o processo de impeachment contra a petista um golpe e admitiu que o governo pode levar o caso novamente ao Supremo Tribunal Federal, mesmo antes da votação na Câmara dos Deputados, que será realizada hoje.

 

A partir de segunda-feira, seja qual for o resultado, podemos esperar alguma estabilidade política no País?

Se vier a se prolongar não há estabilidade possível porque qualquer governo não terá legitimidade. Seja o vice-presidente, seja o presidente da Câmara. O mundo nos observa. Aos olhos do mundo isso vai ser um golpe. Tanto que em um mês caiu muito o número de pessoas a favor do impeachment.

 

Até este domingo ainda é possível alguma nova ação na Justiça para tentar barrar o processo de impeachment?

Estamos acompanhando passo a passo o processo de impeachment e sempre que julgarmos necessário faremos a judicialização. Se faremos ou não até a votação é algo que será avaliado a cada dia e a cada momento

 

O senhor não vai abrir sua estratégia.

É claro que não (risos).

 

Qual a importância política de o Supremo ter delimitado o objeto do impeachment em dois pontos específicos, pedaladas fiscais e decretos de crédito incompatíveis com a meta fiscal?

Porque a inclusão de outras questões foi política. Abriram um processo com duas denúncias e depois passaram a criar um clima político com qualquer fato novo que acontecia. Chamaram o professor Miguel Reale Jr. e a professora Janaína (Paschoal) para prestarem um depoimento sobre tudo. Depois juntam a delação do (senador) Delcídio Amaral. Ou seja, cria-se um clima e para nós é uma situação muito estranha. Como é que você vai se defender se não sabe exatamente qual a acusação? Eu teria que responder toda a delação do Delcídio ponto a ponto? A todas acusações feitas até pelo que estava fora do mandato? Tanto que várias vezes usei a expressão “processo kafkiano”. Você cria uma confusão e turva o processo.

 

Por que o senhor chama a abertura do processo de impeachment na Câmara de chantagem?

O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, praticou desvio de poder. Ele abriu o processo todo mundo sabe como. Ameaçou o governo dizendo que se nós não déssemos os votos na Comissão de Ética ele abriria o processo de impeachment. Aí o PT disse que não faria e ele abriu. Nem disfarçou. É um fato notório mas a palavra mais expressiva é do próprio Miguel Reale Jr. que chamou textualmente de chantagem. O nome disso em Direito é desvio de finalidade. Isso é nulo. Até o advogado dele (Cunha) assessorou o relator (deputado Jovair Arantes, PTB-GO).

 

O fato de Cunha ser réu na Lava Jato tem algum peso jurídico?

Não. E ele nem foi condenado. Também não podemos prejulgar ninguém. Mas do ponto de vista político fica claro que existem dois pesos e duas medidas. O processo dele no Conselho de Ética caminha a passos de tartaruga. No caso da presidente, o processo corre a toque de caixa. As acusações contra ele são severas enquanto a presidente pode ser cassada por uma questão contábil. São duas situações que sempre foram feitas por governos e quando mudou a posição do TCU (<CF742>Tribunal de Contas da União</CF>) se parou de fazer. Veja que situação paradoxal.

 

Não é um equívoco achar que só corrupção é crime? A presidente não cometeu uma irresponsabilidade fiscal que hoje afeta de forma negativa a vida de toda a população?

É sim um equívoco achar que só corrupção é crime. Estou apenas comparando os pesos. Acontece que no presidencialismo a Constituição dá uma série de garantias ao presidente para manter a estabilidade institucional. Exatamente por isso o impeachment é uma situação excepcionalíssima. A Constituição deixa claro que os crimes de responsabilidade devem ocorrer no caso de o presidente praticar atos atentatórios à Constituição. Atentado. Não é uma irregularidade nem uma ilegalidade. É um fato gravíssimo. Tem que ter um ato comprovado, doloso e estar tipificado como atentado à Constituição. Quais são os dois fatos que estamos discutindo? O primeiro é decreto de suplementação (orçamentária). Não tem nada a ver com a meta fiscal. Se você fizer a suplementação de um item do Orçamento e contingenciar outro não está ferindo a meta fiscal pois não está aumentando o gasto. Fizemos o maior contingenciamento da história em 2015. O que gerou o problema da meta fiscal foi a queda da receita. O Congresso aprovou a mudança na meta. Não tem ilegalidade. Mesmo que tivesse havido dolo da presidente? Não. Sempre foi feito. Não há má-fé. A prova de que não está errado é que o TCU pediu a mesma coisa para ele próprio. Quando o TCU mudou de opinião, o governo não baixou mais nenhum decreto. Isso é um atentado à Constituição? Não é.

 

E as pedaladas?

A pedalada que está em pauta é do Plano Safra 2015. O Banco do Brasil pagou os produtores e depois repassa o valor para o banco. Eles alegam que é um empréstimo porque o governo atrasou os repasses. Mas neste caso não é empréstimo. Se fosse, quando o empregador deixa de pagar o empregado poderia dizer que o empregado emprestou dinheiro ao empregador. Isso é correto? Quando o TCU mudou de opinião sobre isso o governo também deixou de fazer e adimple com tudo. E tem outra característica. Pela lei quem é que gerencia o Plano Safra? É o ministro da Fazenda e o Conselho Monetário Nacional. Não tem nenhum ato de gestão da presidente. Ela não assinou nada. Não foi nem julgado pelo TCU.

 

Dolo

“A Constituição deixa claro que os crimes de responsabilidade devem ocorrer no caso de o presidente praticar atos atentatórios à Constituição. Atentado. Não é uma irregularidade nem uma ilegalidade. É um fato gravíssimo. Tem que ter um ato comprovado, doloso e estar tipificado como atentado à Constituição”