O Estado de São Paulo, n. 44743, 18/04/2016. Opinião, p. A3

As lições de um julgamento

 

Relatora no Supremo Tribunal Federal (STF) de uma ação que questiona nomeações recentes feitas pela presidente da República, a ministra Cármen Lúcia criticou a tendência dos partidos políticos de recorrer aos tribunais todas as vezes que seus líderes não conseguem firmar acordos ou ver seus interesses satisfeitos pelo Executivo ou pelo Legislativo.

Na mesma semana, ela participou do julgamento de quatro recursos judiciais impetrados por partidos governistas que pediam a suspensão do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e questionavam a ordem de votação definida pela Câmara dos Deputados.

A judicialização da política acarreta a paralisia da administração pública, dissemina insegurança jurídica e causa tensões institucionais, afirmou Cármen Lúcia ao votar contrariamente às pretensões dos partidos que defendem a continuidade de Dilma à frente do Executivo. Dias antes, ela havia cobrado mais prudência dos partidos e pedido cautela redobrada às diferentes instâncias judiciais, no julgamento de recursos por eles impetrados com propósitos meramente políticos - e que podem acabar interferindo nas jurisdições do Executivo e do Legislativo.

As advertências de Cármen Lúcia são importantes. O problema da judicialização da política é antigo e vem corroendo de forma crescente a estabilidade do sistema democrático e comprometendo o equilíbrio entre os Poderes. Na medida em que os tribunais são acionados a cada impasse, as regras da política acabam sendo redefinidas e apropriadas por juízes, sob o pretexto de conservar a pureza e a integridade da ordem constitucional.

Quanto mais intenso é esse processo, maior é a tendência de expansão do Judiciário sobre a esfera política, com o esvaziamento do Legislativo como locus legítimo para a tomada das grandes decisões que afetam a vida social e econômica do País.

Consolidando a transição da ditadura militar para a democracia, a Constituição deu ao Supremo mecanismos jurídicos importantes para garantir o livre funcionamento das instituições, como é o caso do controle concentrado de constitucionalidade das leis, da revisão judicial das ações executivas e legislativas e da tutela dos direitos fundamentais. O exercício dessas prerrogativas, porém, estava atrelado ao seu uso comedido e prudente por parte de seus ministros.

É por isso que sempre se esperou que esses ministros soubessem discernir quem bate às suas portas pedindo a proteção de seus direitos, para evitar que o princípio do devido processo legal fosse invocado de forma abusiva. Também é por isso que se esperou que o Judiciário não se deixasse levar por artimanhas processuais de partidos e de políticos - artimanhas que tendem a se perder em estéreis discussões técnicas e doutrinárias, gerando imprevisibilidade, em vez de certeza.

Infelizmente, nos últimos anos essa prudência nem sempre prevaleceu no Supremo. Pouco a pouco, sob o pretexto de garantir direitos fundamentais, alguns ministros optaram pelo chamado “neoconstitucionalismo”, colocando princípios à frente de regras na interpretação da Constituição.

E, à medida que passaram a fundamentar a concessão de liminares com base em interpretações programáticas, as decisões monocráticas foram se sobrepondo às decisões colegiadas da Corte, resultando no fenômeno da judicialização da política, para cujos riscos a ministra Cármen Lúcia advertiu os operadores do direito.

Ainda é cedo para saber se a decisão do Supremo de julgar de forma colegiada os recursos que pediam a suspensão da votação do processo de impeachment de Dilma Rousseff foi uma exceção ou representa uma saudável inflexão na linha de atuação que a Corte vinha firmando. Com essa decisão, o Supremo preservou sua imagem.

Mas, para que a Corte não volte a ser instrumentalizada por partidos e congressistas, seus ministros têm de fazer o que deles se espera.