Título: A Fifa e a soberania nacional
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Fonte: Correio Braziliense, 09/10/2011, Opinião, p. 20

Não cabe discussão em torno da prerrogativa da Federação Internacional de Futebol (Fifa) de estabelecer critérios para a realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil. O governo brasileiro já deu amplas garantias de que vai observá-los. Certas exigências, contudo, por incompatíveis com a legislação aqui vigente, não podem ¿ melhor, não devem ¿ ser admitidas. Mas já foram atendidas aquelas que, mediante inovação legislativa, poderiam ajustar-se aos princípios da ordem jurídica estabelecida no país. É o caso da Lei nº 12.350/2010, que isentou de tributos federais os empreendimentos da Fifa e de parceiros estrangeiros e brasileiros.

A instituição encarregada de ordenar normas para a prática do futebol em escala planetária exerce pressão intolerável para alterar disposições legais, sob estímulo de volúpia lucrativa injustificável. Um dos fundamentos da convivência nacional em sintonia com os regimes democráticos é o de que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (art. 5º, II, da Constituição). É certo que as leis podem ser alteradas ou até revogadas, se no interesse da sociedade. Equivaleria submeter o país à instabilidade jurídica reformar ou eliminar regras para atender a conveniências transitórias, em particular as ligadas a entes extranacionais.

Entre as muitas reivindicações impositivas da Fifa, algumas sobressaem por insubmissão a regimes disciplinados pelo governo no Projeto da Lei Geral da Copa, em trâmite no Congresso, e a leis há anos em vigência. No caso do PL, investe em favor de penas mais drásticas para o uso indevido de marcas e pirataria (já fixadas em multa ou três meses a dois anos de detenção). Vai além. Busca de modo imperial a prerrogativa de expedir com exclusividade o credenciamento de jornalistas e de autoridades convidadas.

Outras impertinências não são menos autoritárias. A Fifa, por ser patrocinada por certa marca de cerveja, quer porque quer liberação para a venda de bebidas alcoólicas nos estádios. Além de prejudicial à segurança dos espectadores, o consumo de produtos do gênero está proibido pela CBF com base em ajuste de conduta celebrado com o Ministério Público. Em sete estados é lei. Todas as cidades sedes sujeitam-se a legislação que autoriza meia-entrada para estudantes e idosos, concessão impugnada pela entidade. No caso dos descontos para idosos, previstos no Estatuto do Idoso (Lei Federal nº 10.741/2003), a pretensão ainda é mais audaciosa.

As medidas invocadas pela Fifa à sombra de interesses contrários às disposições do ordenamento jurídico brasileiro exibem natureza intervencionista inadmissível. Parece que a instituição, a julgar pelos seus dirigentes, se considera acima e ao largo do devido respeito às nações. Ceder aos impulsos dominadores da Fifa seria o mesmo que renunciar à soberania nacional. A presidente Dilma Rousseff com certeza vai arbitrar com o apito da civilidade o tempestuoso jogo da Fifa.