Título: Alívio que dura pouco
Autor: Bernardes, Adriana, Campos, Ana Maria
Fonte: Correio Braziliense, 09/10/2011, Cidades, p. 28

O conservadorismo da sociedade e a falta de políticas públicas prejudicam as vítimas. Mesmo quando condenados, agressores raramente cumprem o total da pena

A cada duas horas, uma mulher é assassinada no Brasil. Isso coloca o país entre os que mais registram homicídios em função da violência de gênero. E apesar da gravidade da situação ¿ apontada no Mapa da Violência 2010 do Ministério da Justiça ¿, as estatísticas são precárias e, consequentemente, as políticas públicas de proteção das vítimas e de prevenção dos crimes trilham o caminho do fracasso.

A consultora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) Ana Claudia Pereira relata que, desde a década de 1980, os movimentos de defesa dos direitos da mulher lutam pela criação de um banco de informações confiável. "Sem dados reais e detalhados, fica impossível desenvolver políticas públicas eficientes. A polícia trata tudo como homicídio, sem separar as motivações. Se o Estado não conhece as razões de elas estarem sendo mortas, como vai prevenir novos casos?", pergunta.

Não bastasse a incapacidade do Estado em oferecer o apoio necessário às vítimas, o alívio gerado pela condenação dos algozes dura pouco. Mesmo quando condenados a penas superiores a duas décadas, dificilmente ficarão mais de oito anos atrás das grades. A reportagem tentou entrevistar uma mulher que sobreviveu ao ataque premeditado do ex-marido, de quem passou quase uma década entre o divórcio e a reconciliação. "Você vai me desculpar, mas não quero falar sobre isso. Nem tenho condições psicológicas de voltar a conversar sobre essa história. A verdade nunca aparece. Ninguém nunca vai saber o que realmente aconteceu. Estou cansada de lutar contra tudo isso", desabafou a vítima, desligando o celular em seguida.

A condenação do assassino tampouco trouxe paz para a família da servidora pública Maria de Fátima Mendes Moura, 49 anos. A irmã dela, Ana Paula Mendes Moura, foi morta pelo ex-marido Marcelo Rodrigues Moreira, em 15 de dezembro de 2008. Dentro do restaurante onde ela trabalhava, na 404 Norte, ele a atacou pelas costas com uma faca. "Tenho medo do que pode acontecer quando ele sair da cadeia. Se eu pudesse, espalharia a foto desse monstro pela cidade escrito embaixo "esse homem matou a minha irmã". Assim como ele tirou a vida dela, pode se casar de novo e matar a irmã de outra pessoa", diz.

Nos depoimentos, Marcelo Rodrigues alegou que não conseguia viver sem Ana Paula. Apesar disso, tentou prejudicar a imagem da vítima diante dos jurados. "Falaram muita coisa, até que ela o teria traído. Na hora, a gente sente muito ódio. Dá vontade de pular lá na frente e enforcar a pessoa, de tanta mentira que se diz. Se eu sou irmã e senti isso, imagina os filhos dela?", comenta Maria de Fátima. Esse não é um caso isolado e não são apenas os advogados que tentam transformar vítimas em rés. Desde a morte da irmã, Maria de Fátima assumiu a educação das sobrinhas, hoje com 18 e 17 anos. O mais novo, com 13 anos, vive com o pai em Minas Gerais.

Inversão Delegados, juízes e promotores de Justiça ouvidos pelo Correio atestam que parte dos operadores do direito ¿ as pessoas responsáveis por aplicar as leis ¿ não está preparada para aplicar a legislação de proteção à mulher. "No caso dos agressores, há profissionais do Judiciário que querem aplicar a Lei Maria da Penha (leia o quadro O que diz a lei) para absolvê-los, invertendo a situação e fazendo com que vítima passe a ser ré. Isso não poderia jamais ser permitido de acordo com o texto literal da lei, que é de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher", defende a coordenadora do Programa de Promotoras Legais Populares e da ONG União de Mulheres de São Paulo, Maria Amélia de Almeida Teles.

Não bastasse tudo isso, os maridos assassinos geralmente são réus primários. Para a sociedade, são pais de família exemplares e profissionais dedicados. Acrescente-se o bom comportamento no cumprimento da pena e estão reunidos os pré-requisitos para a progressão do regime. Sob o olhar da Justiça, essas pessoas estão preparadas para retomar suas vidas em sociedade.

Maria Amélia de Almeida Teles diz que o júri e o Judiciário são conservadores. Em geral, trata-se o femicídio ou qualquer outro ato de violência contra as mulheres como algo banal e sem conotação política. Segundo ela, o Judiciário ainda não incorporou a ideia de que as mulheres podem viver sem violência e que o Estado tem o dever de intervir, protegendo as vítimas. "Matar uma mulher por ciúme ou porque ela não quer mais continuar a relação ou porque ela decidiu viver com outra pessoa não significa defender a honra nem do homem nem de ninguém; é um ato criminoso, covarde e tem de ser devidamente punido", defendeu Maria Amélia.

Um dos caminhos para que isso ocorra é o da denúncia. A delegada- chefe da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), Mônica Ferreira Loureiro, afirma: registrar ocorrência contra o companheiro agressor não é garantia de que a vítima ficará viva. Mas ela terá mais possibilidade de sobrevida. "Não temos como manter três policiais na frente da casa de cada vítima de violência doméstica. Mas a lei assegura medidas protetivas e possibilita até mesmo a prisão do agressor", destaca. Segundo a delegada, em muitos casos, o simples fato de o agressor receber a intimação da polícia e ser chamado para audiência inibe a perpetuação dos atos de violência.

Na tarde da última quarta-feira, a reportagem solicitou à Direção da Polícia Civil as estatísticas sobre as motivações dos crimes de homicídio no Distrito Federal. Mas, sexta-feira à noite, a assessoria de imprensa informou que "neste momento não vai disponibilizar os dados contidos no relatório", sem dar qualquer justificativa para o não fornecimento dos dados.