O globo, n.30.212, 25/04/2016. País, p. 6

Sem punição máxima

Hoje nenhum jovem infrator está internado há mais de dois anos; MP quer mudar legislação

“Os adolescentes precisam de limites. Se o Estado não fizer aquilo que a família e a escola deixaram de fazer, esses jovens vão acabar se tornando pessoas irrecuperáveis” Flávia Ferrer Procuradora de Justiça

Apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente prever internações de até três anos em casos graves, nenhum jovem infrator está há mais dois anos em abrigos do Estado do Rio, revela CHICO OTAVIO. Um grupo de promotores e procuradores apresentou uma emenda para tornar a lei mais rigorosa. Assim que aporta de ferro foi aberta, o jovem saiu sem olhar para trás. No prontuário, estava escrito: ele passara dois anos, um mês e uma semana internado na Escola João Luiz Alves, na Ilha do Governador. O resto da medida socioeducativa seria cumprido em liberdade assistida. Foi o máximo de punição que a Justiça conseguiu lhe impor. Em março de 2013, o rapaz participou do grupo que estuprou, agrediu e roubou uma americana, forçada a circular seis horas de van do Rio a São Gonçalo. Na época, enquanto o Rio se preparava para receber o Papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude, o crime chocou acidade e repercuti uno exterior.

DIVULGAÇÃO/ TRIBUNAL DE JUSTIÇASuperlotação. Jovens infratores amontoados numa das unidades do Degase: problema pode estar por trás das liberações rápidas

Por lei, um adolescente infrator pode permanecer até três anos em unidades fechadas, desde que a decisão judicial seja renovada acada seis meses. Porém, levantamento do Ministério Público estadual revela que não há um único jovem mantido por mais de dois anos no sistema, por mais bárbaro que seja o crime. O estuprador da americana talvez tenha sido o último afica rum pouco mais. Dos 680 adolescentes que, no mês passado ( março), cumpriam medidas socioeducativas nas comarcas da capital, que também atendem o estado, apenas quatro, 1% do total, estavam nas unidades fechadas por um período entre 18 meses e dois anos.

A sensação de impunidade encorajou um grupo de promotores e procuradores de Justiça a defender mudanças na lei. Os alvos da emenda proposta são o artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente ( ECA) — que prevê a aplicação de medidas diferenciadas de acordo com os crimes ou contravenções cometidos—e alei 12.594/2012— que disciplina a execução das punições. Em vez de brigar pela polêmica redução da maioridade penal, os membros do MP reivindicam que a Justiça passe atero direito de impor de uma só vez, ao jovem infrator, os três anos máximos internação, sema necessidade de renovara medida periodicamente.

— Os adolescentes precisam de limites. Se o Estado não fizer aquilo que a família e a escola deixaram de fazer, esses jovens vão acabar se tornando pessoas irrecuperáveis. Vão escalando a gravidade dos atos que praticam — lamenta a procuradora de Justiça do Rio Flávia Ferrer, uma das autoras da emenda. UMA VIAGEM DE TERROR Ao acenar para a van que passava pela Avenida Atlântica, em Copacabana, na noite de 30 de março de 2013, uma americana de 21 anos e seu namorado, um francês, de 23, imaginavam que aquela seria a maneira mais rápida de chegar à Lapa. Mas a viagem só terminaria 60 quilômetros depois, deixando marcas eternas. Os outros passageiros foram obrigados a descer em Botafogo. A partir dali, o casal foi aprisionado no veículo pelo motorista, pelo cobrador — o jovem de 14 anos — e um terceiro comparsa, iniciando- se uma sequência de violências que durou quase seis horas. Um quarto integrante da quadrilha teria entrado na van mais à frente.

O francês foi algemado, agredido e ameaçado com barra de ferro. A americana, estuprada por todos. Dois socos quebraram- lhe o nariz. A quadrilha ainda os obrigou a sacar R$ 1,2 mil. Por fim, o casal foi liberado num ponto de ônibus em São Gonçalo.

Apreendido cinco dias depois, o cobrador adolescente foi recolhido a uma unidade do Departamento Geral de Ações Socioeducativas ( Degase) do Rio, responsável pela aplicação das medidas, sem prazo de permanência. Antes de completar seis meses de internação, teve de ser submetido novamente a uma decisão judicial, como prevê o parágrafo 2 º do artigo 121 do ECA. A norma não permite aos juízes fixar medidas socioeducativas com tempo determinado, ainda que envolvam atos cometidos com violência ou grave ameaça. Então, a cada seis meses de internação, o jovem é submetido a nova audiência com o juiz.

Outro artigo, o 42 da lei 12.594/ 2012, define que a gravidade do ato infracional e os antecedentes não podem impedir que a medida inicialmente aplicada seja substituída, na reavaliação judicial, por outra menos grave. Na prática, significa que a decisão do juiz, para casos como o do estupro da americana, só pode levar em conta o comportamento do adolescente infrator dentro da unidade. Nesse caso, o único elemento oferecido aos magistrados, no momento da reavaliação da medida, é um relatório técnico, produzido por psicólogos ou assistentes sociais do Degase.

O relatório, em tese, serve para mostrar o desempenho desse jovem com base em seu “plano de atendimento individual” na unidade. Mas os promotores e os procuradores de Justiça duvidam dos propósitos. A superlotada rede de unidades de internação do Degase, suspeitam, é um estímulo para relatórios suaves e superficiais, afiançados pela promessa recorrente entre os jovens internos de “mudar de vida”. Seu conteúdo é o caminho mais curto para o esvaziamento contínuo das galerias.

Na proposta, que busca emendar o projeto de lei do Senado n º 333, de 2015, o grupo do Ministério Público sustenta que a legislação infantojuvenil apresenta graves distorções, “que a tornam excessivamente branda” e inviabiliza a ressocialização dos adolescentes ao permitir que fiquem internados por poucos meses, “tempo claramente insuficiente para que se possa planejar e desenvolver um trabalho socioeducativo minimamente eficiente”.

Para ganhar as ruas, o jovem não precisa cumprir as metas de escolarização e de capacitação profissional de seu projeto de reeducação, garante o grupo de promotores. Basta, segundo eles, não cometer atos graves de indisciplina. De acordo com o levantamento do MP, o período médio de internação dos adolescentes é de quatro meses, e 81% do total ficam apenas seis meses nas unidades. Tempo que os promotores consideram infinitamente longe do mínimo necessário para se pensar em recuperação.

Quase metade dos jovens infratores em abrigos ( 49%) está envolvida com roubo. Logo atrás, aparece o contingente dos que cometeram atos infracionais ligados ao tráfico de drogas ( 34%), seguido daqueles que praticaram homicídio e latrocínio ( 7%), furto qualificado ( 6%), porte ilegal de armas ( 2%), estupro ( 1%) e outros atos ( 1%).

— Grande parte destes jovens é portadora de transtornos mentais e emocionais, fruto do abandono pela vida. A lei, para eles, é a transgressão da lei. Nas condições oferecidas, dificilmente se recuperam. Não é o relatório de um psicólogo que dirá se ele fica ou sai. Para fazer alguma coisa, é preciso investir em saúde, alimentação, habitação. Talvez levá- lo a tratamento em hospitais universitários. Isso já existe em outros lugares e faz com que eles sintam o direito de existir — disse Jiosef Fainberg, neuropsiquiatra que trabalha com adolescentes.

DEFENSORIA É CONTRA MUDANÇA

Um projeto de reforma do ECA já foi aprovado pelo Senado e, no momento, encontra- se na Câmara. A proposta de emenda a esse projeto, de n º 333, foi entregue ao deputado Carlos Sampaio, líder do PSDB na Câmara.

A Defensoria Pública do Rio, porém, deverá se insurgir contra a iniciativa do MP. A coordenadora de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do órgão, Eufrásia Maria Souza das Virgens, disse que a mudança na legislação viola princípios constitucionais, como a brevidade, a excepcionalidade e o respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento:

— De forma alguma, vemos como alternativa aumentar o tempo de internação. Isso não resolve. A atenção ao adolescente não é igual a de um adulto. Mudar essa situação fere até acordos internacionais assinados pelo Brasil.

O Degase, procurado, não quis se manifestar sobre o assunto.