Título: Não, aos tribunais de exceção
Autor:
Fonte: Correio Braziliense, 12/10/2011, Opinião, p. 14

A democracia é o regime da lei. Se a lei estiver exposta à suspensão de seus efeitos para atender a interesses transitórios de terceiros, instala-se a anarquia. Uma vez aberta a porta a aberrações da espécie, pavimenta-se o caminho para convertê-las em precedentes prejudiciais à segurança jurídica. A não ser por expressa violação aos fundamentos do regime será possível admitir as exigências da Fifa em favor de drásticas mudanças na legislação nacional. No entendimento da entidade, o absurdo deve ser aceito para tornar viável a realização da Copa do Mundo no Brasil, em 2014.

Além de tentar pôr de joelhos a ordem legal do país, a Fifa dá-se agora o direito de instalar tribunais de exceção para funcionar durante o evento esportivo. Seriam estruturas paralelas ao Poder Judiciário munidas de prerrogativas para julgar e punir eventuais lesões acaso sofridas pela organização. Caberia às "cortes" a tarefa iníqua de colocar cidadãos no banco dos réus e ditar-lhes a extensão das sentenças. Na Copa de 2010, na África do Sul, o delírio despótico da instituição chegou a ponto de condenar dois cidadãos sul-africanos a 15 anos de prisão, só pelo fato de haverem furtado objetos de jornalistas.

A questão é que a soberbia intervencionista da Fifa está prevista na Lei Geral da Copa, proposta pelo Palácio do Planalto e submetida a debate a partir de hoje. O Supremo Tribunal Federal (STF), conforme posição definida por alguns ministros, já adverte sobre a impossibilidade do surgimento de tribunais de exceção no Brasil, salvo em afronta inadmissível à Constituição. O comentário do ministro Marco Aurélio Mello resume o pensamento de seus pares: "Vai ver eles (dirigentes da Fifa) até pensam em um segundo STF, um segundo STJ (Superior Tribunal de Justiça). É preciso respeitar as instituições pátrias. Como julgador e cidadão, vejo isso como impossível. Cidadãos já têm seus direitos garantidos na Constituição".

É dever do Congresso desintoxicar a Lei Geral da Copa para retirar-lhe os venenos ministrados pela Fifa contra a higidez do organismo democrático e dos estatutos legais assecuratórios da soberania nacional. O ente encarregado de expedir normas para disciplinar a prática do futebol carece de poderes para submeter nações a caprichos tirânicos. Deputados e senadores devem observar o que proclama o artigo 5º, XXXVII, da Carta Magna. Ei-lo: "Não haverá juízo ou tribunal de exceção".

Está em causa, também, manter a convicção dos países civilizados de que o Brasil é uma sociedade aberta, afluente, solidária, amparada por sólidas instituições político-jurídicas. Ceder às medidas imperiais da Fifa seria o mesmo que confessar o contrário. O Poder Legislativo, portanto, está convocado a escalar as alturas da respeitabilidade, no caso para fulminar os despautérios da Fifa.