Correio braziliense, n. 19326, 24/04/2016. Cidades, p. 21

Irregularidade crônica

Maryna Lacerda

O Distrito Federal cresce a uma taxa de 2,3% a 2,5 % ao ano, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em números absolutos, trata-se de um incremento entre 60 mil e 70 mil pessoas no território, número que corresponde à população de Vicente Pires. É, portanto, um contingente difícil de ser ignorado, pois não só utiliza os serviços públicos como demanda espaço nas cidades. E é justamente aí que entra o desafio do planejamento urbano: prover locais para habitação. Nesse contexto, a ocupação desordenada das terras — em especial, as públicas — é um complicador da distribuição de moradias, do acesso ao transporte coletivo e à rede de saúde e educação. Em última análise, a desordem dificulta a existência da cidade.

O desordenamento do território começa de forma sutil, mas se alastra rapidamente. Surge do prego que une as tábuas de um barracão de madeira. Em seguida, um assentamento irregular aparece em área de preservação em questão de uma semana. Foi o que ocorreu com o acampamento que vinha sendo chamado de Expansão do Itapoã, às margens da Rota do Cavalo, na DF-440. Em sete dias, uma área de 40 hectares foi tomada por 937 barracos. Desses, apenas 40 aparentavam abrigar pessoas. É um caso típico de tentativa de grilagem em local de sensibilidade ambiental, uma vez que o terreno fica dentro da APA do São Bartolomeu. Na semana passada, a área foi alvo de derrubadas por denúncia de supressão de vegetação. Durante a estadia dos invasores, a mata fechada deu lugar a um descampado. Na operação, seis pessoas foram presas por crime ambiental.

Se não for controlada, a invasão se desdobra em novas etapas tão numerosas quanto confusas. A cada dia que permanece, torna-se mais difícil de ser debelada. Com o tempo, se estabelece, tal qual o Assentamento Santa Luzia, na Cidade Estrutural. A área é ocupada há cerca de 25 anos e, desde então, multiplicou-se algumas vezes em tamanho. Hoje, pelo menos 5 mil pessoas vivem na antiga chácara.

Iniciada por causa do interesse especulativo, ela abriga moradores em situação de vulnerabilidade social extrema, como Ivonete Nascimento da Conceição, 49 anos. Há nove, ela se mudou do Maranhão para o DF a fim de acompanhar o então marido. A mulher morou três anos na Estrutural, mas, quando o companheiro a abandonou, ficou sem condições de custear o aluguel. “Eu trabalhava, mas tive um problema na perna e não consegui mais sair de casa. Fiquei sem dinheiro e parei no Santa Luzia. Paguei R$ 4 mil parcelado, era o que eu tinha”, conta. Lá se vão seis anos no assentamento. Hoje, ela vive com dois filhos e um cachorro em um barracão de pouco mais que 40m². As condições são precárias. “Já cansei de chorar vendo a água entrar por baixo da porta. Não acho que vão nos deixar ficar aqui, não. Vão nos retirar”, lamenta.

 

Concepção

Mesmo que a possibilidade seja de permanecer no Santa Luzia, Thaís Pereira Rodrigues, 21 anos, prefere ir para outro lugar. Há três anos, ela saiu da Bahia em busca de emprego. Aqui, trabalhou no Restaurante Comunitário da Estrutural, mas perdeu a vaga com a recessão econômica. Sem condições de pagar o aluguel, mudou-se para o assentamento, em um barraco parcelado. Thaís mora na parte mais recente — e precária — da invasão com a filha Ana Júlia, de 6 meses. “Faço bicos, como lavar roupa para fora, para faturar alguma coisa. Não tenho água saindo do cano. Para dar banho nela, eu encho o tambor à noite e uso no outro dia”, explica. Além disso, os lotes vazios são foco do mosquito Aedes aegypti. “Sofri com a dengue sozinha, só eu e ela aqui. É complicado, porque tem muito lixo, que vira criadouro do mosquito”, reclama.

Uma forma de barrar as invasões é mudar a concepção de território pela população, de acordo com o presidente da Companhia de Desenvolvimento Habitacional do DF (Codhab), Gilson Paranhos. “É essencial que a comunidade tenha consciência. É obrigação do Estado tomar conta da terra, mas a sociedade brasiliense também tem de tomar conta dela”, defende.

Segundo Gilson, maior participação significa, inclusive, não permitir que a legislação incentive a desordem, a exemplo da Lei da Grilagem, de autoria da deputada distrital Telma Rufino. A Lei nº 5.646/2016 obriga o GDF a notificar os invasores antes das derrubadas. Há duas semanas, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e a Procuradoria-Geral do DF entraram na Justiça para questionar a validade da lei. O Conselho Especial do Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT) acatou o pedido dos dois órgãos.

 

Radiografia

» Setores habitacionais: 29

» Áreas de Regularização de Interesse Específico (Arines): 50

» Áreas de Regularização de Interesse Social (Aris): 39

» Parcelamentos urbanos isolados: 27

 

Fonte: Terracap

 

Invasões

Confira os principais focos

 

» Assentamento Santa Luzia, na Estrutural

» Condomínio Porto Rico, em Santa Maria

» Setor Habitacional Sol Nascente, em Ceilândia

» Condomínio Pôr do Sol, em Ceilândia

» Vila Cauhy, no Núcleo Bandeirante

» Buritizinho, em Planaltina

» Fercal, em Sobradinho

 

» Morro da Cruz, em São Sebastião