Valor econômico, v. 17, n. 4.010, 23/05/2016. Política, p. A6

"Pavor de inflação" segurou câmbio além do necessário em 98, diz FHC

Por: César Felício

 

No dia 15 de agosto de 1998, o então presidente Fernando Henrique Cardoso fez um comentário breve, no fim de suas gravações diárias que seriam compiladas em livro dezoito anos mais tarde. "A situação econômica mundial complicou bastante". Previu um quadro de recessão mundial, impacto brutal no mundo e no Brasil, e concluiu: "Como estamos em véspera de eleição, barbas de molho".

Em plena campanha pela reeleição, assim o presidente recebeu a notícia da moratória da dívida externa da Rússia, desencadeada quando Boris Ieltsin, em seu penúltimo ano de governo, não conseguiu formar um gabinete. Começava ali, naquele dia, a crise internacional que desencadearia no sistema financeiro uma aversão a mercados emergentes, desconfiança generalizada sobre a sustentabilidade da política econômica brasileira e uma desvalorização desordenada do real em janeiro de 1999.

A crise cambial marcou Fernando Henrique para sempre. Seu segundo mandato tornou-se uma gestão de crises. "O sistema político começou a golpear, acharam que eu estava fraco. O PFL e o PMDB, por meio do Antonio Carlos Magalhães (1927-2007, então presidente do Senado) e do Jader Barbalho (à época, presidente nacional do PMDB), na disputa por poder, instalaram uma CPI do sistema financeiro que terminou na prisão do Francisco Lopes (presidente do Banco Central por alguns dias em janeiro de 1999). Queriam ter vantagens", comentou em entrevista na tarde da quinta-feira o ex-presidente, ao lembrar das consequências da crise russa.

O segundo volume dos "Diários da Presidência", que narra os acontecimentos de 1997 e 1998, termina exatamente às vésperas docataclisma de janeiro de 1999, quando Fernando Henrique trocou duas vezes de presidente do BC, na ilusão de que poderia administrar trocar o regime de câmbio administrado pelo da "banda diagonal endógena", com o estabelecimento de um piso e teto da cotação da moeda. O livro, de 824 páginas, será lançado esta segunda-feira pela Companhia das Letras.

Na visão de Fernando Henrique, a implosão de sua base parlamentar preocupou mais do que a ação oposicionista pelo seu impeachment. "O PT nunca conseguiu atrair partidos e lideranças que eram meus aliados para a tese da minha destituição", diz na entrevista, ponderando: " o que marcou 1999 foi que a crise de confiança, que era externa, passou para a população. O ponto positivo foi que a desvalorização não acarretou inflação, e essa era a nossa preocupação maior", diz.

O pânico de um surto inflacionário que minasse a base do Plano Real foi o fator primordial que levava o governo a resistir a substituir o modelo de câmbio. " Nosso pavor era o da volta da inflação. Encarávamos o dólar como uma âncora, o que de fato foi, e não tínhamos certeza sobre o impacto nos preços internos que teria a desvalorização", diz FHC.

Em meados de 1998, como o ex-presidente narra no livro, o governo chegou à conclusão de que havia um dilema: a taxa de juros asfixiava a economia e elevava o déficit fiscal, mas estava engessada para evitar uma fuga de capitais. A saída de dinheiro do Brasil sangraria as reservas monetárias e tornaria a cotação fixa entre real e dólar insustentável.

A moratória da Rússia elevou o grau de preocupação e Fernando Henrique começou a ouvir integrantes de seu governo que estavam um pouco mais distantes do presidente do BC, Gustavo Franco. No dia 27 de agosto, reuniu-se com José Roberto Mendonça de Barros (então secretário executivo da Cacex); Francisco Lopes (à época diretor de Política Monetária do BC); e André Lara Resende (então presidente do BNDES). A ideia era criar um grupo para pensar como sair do que FHC chamou de "armadilha". "Esse é o maior desafio pelo qual o governo vai passar depois das eleições", disse ao gravador.

Fernando Henrique não concordava com mais cortes de gastos públicos, embora os tenha feito, em função dos compromissos com o FMI. "O déficit provem do fato de termos uma taxa de juros extremamente elevada", afirmou no livro em 31 de agosto, relatando uma conversa que teve com o então ministro da Fazenda Pedro Malan.

No mês seguinte, Fernando Henrique começou a receber telefonemas de Bill Clinton e foi procurado por banqueiros internacionais. No dia 4 de setembro, o BC teve que gastar US$ 2,6 bilhões para manter a cotação. No feriado de 7 de setembro, o banqueiro Joseph Safra, em um almoço, se mostrou "extremamente pessimista". A conclusão de FHC foi preocupante. "Está todo mundo remetendo tudo o que pode, porque há a sensação de que vamos centralizar o câmbio".

A centralização de câmbio era realmente motivo de debate no governo. A ideia chegou a ser proposta por Lara Resende, em uma das reuniões de gestão da crise com Fernando Henrique, mas não prosperou. "O André é brilhante, extremamente criativo e no desespero, cada um inventa uma saída. Mas eu sempre fui contra uma intervenção dessa natureza", disse. Fernando Henrique relata que a centralização também foi defendida por Mendonça de Barros.

Lopes também rechaçava a solução. "O Chico quer resistir ou deixar o cambio flutuar". A ideia da desvalorização, contudo, igualmente era descartada por FHC. Não apenas pelo temor à inflação, conforme contou na entrevista. " Não se mexe em regime cambial no meio de uma crise externa", disse.

No dia 9 de setembro, Malan anunciou um corte de gastos e ao gravador o presidente mostrou desânimo. "Não há mais onde cortar (...) esse é o preço da nossa política de valorização do real (...) o mercado acredita que o governo está na gastança e na verdade o que está havendo é uma supervalorização dos juros. O governo corta, corta, e isso não resolve, não consegue estabilizar",comentou. A partir deste momento começa a negociação com o governo dos Estados Unidos e com o FMI para um socorro internacional. Em 11 de setembro, FHC conversou com o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Robert Rubin, que relatou a avaliação que a trajetória brasileira não era sustentável e que os mercados percebiam isso.

A conversa era difícil, segundo FHC, porque o FMI queria mais corte de gastos, mais aumento de juros e desvalorização da moeda simultaneamente. "Não confiavam na nossa capacidade de manter o que pretendíamos", disse em entrevista. A conversa avançou depois que Franco aumentou o teto da banda de juros de 29% para 49,75%, em uma decisão que surpreendeu o presidente. A elevação foi decidida, segundo sua dedução, entre o BC, Malan, Luis Carlos Mendonça de Barros e Pedro Parente, então secretário-executivo do ministério. No desespero de então, Franco não descartou adotar "medidas não ortodoxas". Na tradução de FHC, era uma referência a dificultar remessa de recursos para brasileiros residentes no exterior. Quem barrou a iniciativa, de acordo com o presidente, foi Lopes.

Em meio a campanha eleitoral, FHC decidiu sinalizar publicamente que havia uma crise grave em curso e que medidas amargas seriam tomadas. Após discussão com o comando da campanha, a opção foi usar uma solenidade pouco relevante no Planalto para mencionar a crise em um discurso. FHC fez isso em 23 de setembro, mas não abordou mudança do regime cambial.

Tratava-se de um jogo de sombras. "Tudo isso que eu digo-déficit fiscal e tudo mais - é um pouco meia verdade. Não que não exista déficit a ser combatido, mas a questão que nunca foi posta (pelo governo) é a cambial", disse. Foi neste momento que FHC afirma ao gravador que dera a Franco e aos ortodoxos do BC a última chance.

O acordo com o FMI saiu em 13 de novembro de 1998, no valor de US$ 41,5 bilhões, depois da reeleição. Uma derrota no Congresso, em dezembro, colocou tudo a perder. Fernando Henrique não conseguiu aprovar a cobrança de contribuição previdenciária de ativos e inativos. "A leitura no exterior foi de perda de controle, mudou a percepção a nosso respeito, a especulação cresceu e o empréstimo foi insuficiente. A questão política então foi determinante para que as coisas tenham se passado como se passaram", resumiu.

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