Valor econômico, v. 17, n. 4003, 12/05/2016. Política, p. A8

'Pecado original' de Dilma pode ter sido ignorar Lula

Interlocutores dizem que ex-presidente esperava ficar com a vaga

Por: Andrea Jubé

 

E se Dilma Rousseff não tivesse barrado o "volta, Lula" em 2014? E se tivesse nomeado Henrique Meirelles, e não Joaquim Levy, para o Ministério da Fazenda, desde o início do segundo mandato, como queria Lula? E se tivesse nomeado Jaques Wagner, e não Aloizio Mercadante, para a chefia da Casa Civil, como era o desejo de Lula? E se a Operação Lava-Jato não tivesse avançadosobre o PT e sobre Lula com a força que virou as ruas contra o governo? E se o juiz Sérgio Moro não tivesse autorizado a divulgação do diálogo entre Dilma e Lula, que sugere desvio de finalidade na nomeação do ex-presidente para a Casa Civil?

E se, ao menos, ela fizesse um mea culpa, o que nunca fez, nem em conversas reservadas? Dilma Vana Rousseff continuaria na história apenas como a primeira mulher eleita presidente da República, ao invés de figurar, também, como o segundo presidente a sofrer impeachment em três décadas de democracia?

"Na política não existe 'se', existem os fatos, que culminaram no impeachment, com consequências imprevisíveis", analisa um alto dirigente do PT. Ele admite que essas perguntas roubaram o sono de petistas e militantes nas últimas semanas.

Para este petista, o "pecado original" que desaguou no impedimento não é o presidente afastado da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), porque deflagrou o processo num "ato de vingança", como Dilma tem afirmado em seus discursos. O "pecado original" da crise política está em Dilma não ter aberto o flanco para que Lula fosse o candidato à sucessão presidencial em 2014, afirma. Mesmo após a sucessão de denúncias contra ele, Lula continuou liderando em pesquisas a corrida presidencial.

Segundo dois interlocutores de Lula ouvidos pelo Valor, o ex-presidente esperava que sua sucessora lhe cedesse a vaga. A inércia de Dilma motivou o "volta, Lula". Cabeças dessa corrente, como a senadora Marta Suplicy (SP), ex-PT, hoje no PMDB, e o ex-ministro Gilberto Carvalho se ofereceram para falar com Dilma e pedir-lhe que deixasse Lula ser candidato, mas o ex-presidente desautorizou as iniciativas.

Um pemedebista que permaneceu ao lado de Dilma - mesmo depois que a Executiva Nacional do PMDB sacramentou o rompimento com o governo, em março - aponta o dedo para o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, antecessor de Jaques Wagner na Casa Civil: "Mercadante é o coveiro desse governo", acusa.

Por causa de Mercadante, que era o braço-direito de Dilma, ela viu ruir a relação com o PMDB e terminou como alvo de "chacota" no Congresso.

Por confiar no presidente do PSD, o ex-ministro das Cidades Gilberto Kassab, ela investiu no desgaste da relação com o PMDB, o principal aliado. Em meio à campanha à reeleição, Kassab convenceu Dilma e Mercadante que fundaria um novo partido, o PL, fruto da fusão do PSD com o Pros e com a adesão de deputados insatisfeitos. A futura bancada seria maior que o PMDB e livraria Dilma do "fisiologismo" do principal aliado.

Dilma virou "chacota" porque Kassab, e o presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), transformaram-se nos maiores traidores do Planalto, no curso das negociações para conquistar votos contrários ao impeachment na

Câmara. Uma fonte do Planalto admite que Kassab fazia reuniões com os ministros Jaques Wagner (Gabinete Pessoal) e Ricardo Berzoini (Secretaria de Governo), e depois levava as listas com os votos pró-Dilma para os auxiliares de Temer.

Já o presidente do PP, Ciro Nogueira, teria convencido Dilma a não sacramentar os cargos negociados com o partido antes da votação do impeachment. Depois, segundo uma fonte palaciana, ele obteve espaço maior no futuro governo de Michel Temer, ao garantir para a sigla a presidência da Caixa Econômica Federal, além do comando de dois ministérios, que já havia articulado com Dilma.

O começo do fim, na visão de pemedebistas, foi quando Dilma ignorou os conselhos do senador Jader Barbalho (PMDB-PA), num jantar no Palácio da Alvorada, com o vice-presidente Michel Temer e o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, no dia 7 de abril de 2015. No dia seguinte, Temer assumiu a articulação política do governo, função que exerceu por quatro meses e culminou no esgarçamento da relação entre PMDB e Planalto.

"Temer me levou para falar com Dilma porque sou casca grossa, digo o que tem que ser dito", diz Jader. O pemedebista alertou que era um "erro" Dilma delegar um poder que é inato ao presidente da República para um terceiro. Inicialmente, Dilma cogitou até nomear Temer ministro, e Jader advertiu: "quem nomeia, demite, como a senhora vai demitir o seu vice?" Ele acrescentou que se a aposta fracassasse, poderia levar ao rompimento das relações com o PMDB.

Era uma profecia. Segundo um integrante da equipe de Temer na articulação política, Dilma descumpriu a palavra e nunca deu autonomia para o vice. "Ela enviava Mercadante e Berzoini a todas as reuniões", relembra.

O começo do fim, na avaliação de petistas, ocorreu já na posse do segundo mandato, em janeiro de 2015, quando ela assumiu um discurso contrário ao da campanha, surpreendendo eleitores e sua base social. "Ela assumiu e foi logo falando em ajuste fiscal, Reforma da Previdência, prometeu uma coisa e fez outra, enquanto a Lava-Jato corria solta", critica uma liderança do PT.

Um de seus auxiliares mais próximos a defende com convicção. Diz que ela nunca pode começar o segundo mandato. Lembra que no dia seguinte ao resultado das urnas, a oposição pediu auditoria dos votos, que houve uma denúncia de corrupção atrás da outra. Argumenta que o ex-presidente Fernando Henrique Cardozo enfrentou uma grave crise econômica no segundo mandato, mas contou com o então presidente da Câmara, Michel Temer, que abriu caminho para a votação das matérias que aliviariam aturbulência. "Eduardo Cunha sempre a atrapalhou na Câmara", acusa. "Estavam todos contra ela, Ministério Público, Polícia Federal, Tribunal de Contas, Congresso, fica difícil sustentar um governo assim", lamenta.

Há alguns meses, ela adotou como bordão um verso de uma música de Lenine: "eu envergo, mas não quebro". Orgulhosa e teimosa, Dilma não mostra abatimento. Apraz-lhe cultivar a imagem da "guerrilheira", que foi presa e torturada durante a militância política contra a ditadura militar.

Foi sua biografia que a fez investir no confronto de biografias com Eduardo Cunha no rastro do impeachment. "Eu não sou acusada de possuir contas no exterior", repete em discursos. Mas é responsabilizada, contudo, pela escalada da inflação, dos juros e do desemprego.

Nenhum de seus aliados - agora ex-aliados - questiona sua biografia ou dignidade pessoal. Mas todos afirmam que ela perdeu a capacidade de governar. "Ela quebrou o país", acusa um parlamentar da cúpula do Congresso. "O erro dela foi rezar terço em zona de meretrício", tripudia outro ex-aliado. Se no julgamento final, o Senado reconduzir Dilma, um integrante da Mesa Diretora do Senado diz que ela não terá sustentação política. "Como ela vai governar com uma base de 130 deputados e um terço dos senadores?", questiona.

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Marca da era PT, avanço social evita crise mais profunda

Por: Cristian Klein

 

A esperança venceu o medo naquela eleição que levava o Partido dos Trabalhadores (PT) e Luiz Inácio Lula da Silva ao poder federal em 2003. Mas a combinação de uma presidente com fobia do Congresso e a confiança exagerada em instrumentos de política econômica heterodoxa interromperam em 13 anos e menos de 5 meses, o primeiro governo de esquerda no país desde a redemocratização, no mais longo período de um partido na Presidência da República.

Admitido pelo Senado, o processo de impeachment de Dilma Rousseff suspende uma era que será lembrada pelo lado negativo - o desequilíbrio fiscal e o impacto de dois grandes escândalos de corrupção, o mensalão e a Lava-Jato - mas também pelo aumento do consumo, do mercado interno e de avanços sociais que, no auge, em 2010, tornaram o petismo e Lula, com 83% de popularidade, uma temida força, capaz de derrotar tradicionais caciques políticos, alguns dos quais retomam o protagonismo, na ascensão de Michel Temer e do PMDB ao Planalto.

O PT entrou no governo com cautela. Conservou as bases da política econômica do antecessor Fernando Henrique Cardoso, garantidas, ainda na campanha, pela Carta ao Povo Brasileiro, e pela nomeação de Antonio Palocci para o ministério da Fazenda e de Henrique Meirelles para o Banco Central. Mantinha-se o chamado tripé econômico, que consistia no regime de metas de inflação, câmbio flutuante e disciplina fiscal.

Mas não seria com a ortodoxia que Lula ganharia o coração e os votos dos brasileiros, que haviam desconfiado do projeto petista e o derrotado em três eleições anteriores (1989, 1994 e 1998).

Se o apoio para conquistar o primeiro mandato, em 2002, veio da esperança de se apostar num partido até então considerado radical, as vitórias em 2006 e 2010 foram resultado do reconhecimento a uma série de políticas sociais e de renda, como o BolsaFamília, cujos beneficiários chegam a 25% da população, e a valorização do salário mínimo. Desde o início da era PT, o salário mínimo teve um aumento real de 77,18% acima da inflação.

Se os oito anos de FHC e do PSDB, criadores do Plano Real, se notabilizaram pela estabilidade econômica, a marca do período petista é o da inclusão social. Com programas educacionais (ProUni, Fies, Pronatec), habitacionais (Minha Casa Minha Vida, Minha Casa Melhor) ou na área de saúde (Mais Médicos), o governo federal aumentou os gastos públicos ao mesmo tempo em que deu gás a transformações sociais. Desde 2003, a proporção de negros no ensino superior cresceu de 25% para 42%, embora a lei de cotas em universidades federais tenha sido aprovada somente em 2012. Grande parte da mudança foi impulsionada pelocrescimento da oferta de vagas no setor privado.

A desigualdade de renda, medida pelo índice de Gini, reduziu-se em todos os anos no período. Enquanto isso, no mundo, a tendência foi de aumento e, na América Latina, parou de cair.

Nos últimos meses, a taxa de desemprego voltou a subir, diante da mais grave crise econômica do país em décadas, contribuindo para o clima de insatisfação que derrubou a aprovação ao governo Dilma para 8%, segundo o Datafolha, em agosto do ano passado, a dez dias da terceira grande manifestação de rua contra a presidente. Mesmo assim, a taxa de desemprego média de 2015 fecharia em 6,8%, pela pesquisa mensal do IBGE, e pulou para 8,2% em fevereiro deste ano. Apesar disso, é um percentual abaixo dos 12,3% registrados no primeiro ano do PT no poder.

"O ganho na era PT foi bastante grande e as perdas também, agora no fim. Mas qualquer queda [nos indicadores] não retoma os patamares de 2002. O desemprego era maior, os juros também eram muito altos", analisa a cientista política Argelina Figueiredo, do Iesp/Uerj, em referência à taxa básica Selic, que era de 25% naquele ano e está em 14,25%.

Para Octavio Amorim, da FGV-Rio, desde o início da crise econômica não houve mais expansão dos programas que caracterizaram a marca social do PT, "mas também não houve regressão radical". Em sua opinião, um sinal de que as realizações surtiram efeito está no fato de que não há uma crise social com a gravidade e nas proporções das crises política e econômica. "No meio de uma profunda recessão, há uma rede de proteção social que o país nunca teve em outras crises, como a dos anos 1980 e 1930. Isso é o que permite a população não ir para o fundo do poço", diz. Amorim prevê que, apesar do "fim melancólico" da era PT, as conquistaspermanecerão e Temer "não as reverterá".

O cientista político é defensor da tese de que, na raiz da crise e do consequente declínio do governo petista, está a personalidade da presidente Dilma Rousseff, ao lado de fatores estruturais - como a alta fragmentação e a ampla heterogeneidade ideológica do Congresso - e um evento único na história do país: a Operação Lava-Jato.

De fato, Dilma, com um perfil bem mais à esquerda do que a maioria do Parlamento, tomou decisões arriscadas, unilaterais e, desde o começo, a impaciência para a barganha política tornou-se seu cartão de visita. Conhecida pela falta de jogo de cintura, recebeu do então presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, um bambolê de presente,

Mas Dilma não abandonou suas convicções, e foi dobrando as apostas, na economia e na relação com o Congresso. As políticas anticíclicas, que deram certo no enfrentamento da crise internacional de 2008/2009, foram repetidas como um realejo. O tripé foi flexibilizado e instaurou-se a chamada Nova Matriz Econômica, baseada em forte intervencionismo estatal. Os indicadores começaram a piorar. O PIB, que havia crescido em média 3,5% no primeiro mandato de Lula, e 4,6%, no segundo, declinou para 2,2% com Dilma I, mesmo patamar da segunda metade da era FHC. No ano passado, o PIB bateu em -3,8%. A inflação, depois de o governo não conseguir mais segurar artificialmente os preços administrados, como os de combustíveis e energia elétrica, saltava para 10,67%, mais que o dobro da meta de 4,5%. O superávit primário, que com Lula chegou a registrar 3,7% do PIB - embaladopelo crescimento da economia e pelo cenário internacional favorável com o superciclo das commodities - passou para um déficit de 1,9%.

Economistas e integrantes da oposição costumam enfatizar os equívocos da política desenvolvimentista de Dilma, que minaram a confiança do empresariado e mexeram com fundamentos macroeconômicos: os aportes bilionários no BNDES, para empréstimos a juros subsidiados; a intervenção no setor elétrico; a tentativa de baixar os juros na marra; a concessão de isenções tributárias para alavancar setores da indústria; e os efeitos inflacionários e fiscais que daí decorreram. As contas públicas deterioraram-se. A dívida bruta, que era de 51% do PIB no fim do governo Lula, deve chegar a 73,5% até dezembro. Em meio à campanha à reeleição, acelerou-se o que ficou conhecido como contabilidade criativa. As "pedaladas fiscais" - praticadas por outros presidentes, embora não na mesma intensidade, e também por atuais governadores de Estado - entraram no debate como justificativa paraimpeachment.

Mas nada indica que a era petista seria interrompida sem a eclosão de uma crise política de desdobramentos imprevisíveis, desde o momento em que Dilma riscou o chão e comprou a sua maior briga, ao tentar, sem sucesso, impedir que Eduardo Cunha fosse eleito presidente da Câmara.

O deputado, com perfil muito mais à direita do que o centrismo do PMDB, acossado pelas investigações da Lava-Jato, condicionou a sua sobrevivência à do próprio governo. E contou com a conveniência da conjugação de seus interesses com os da oposição paradeflagrar a cruzada antipetista.

Uma oposição que, inconformada com a derrota nas urnas, tratou de provocar a queda de Dilma, custe o que custasse, a ponto de ser acusada de promover um golpe frio.

Para isso, contou com a cabeça quente da população. Se em 2002, a vitória do PT tinha o signo da esperança, e em 2006 e 2010, da recompensa; em 2014, veio pelo receio do retrocesso.

Na diferença entre a promessa de um mundo igual ou melhor, vendido na campanha, e a realidade, o medo virou voto de não confiança ou de rejeição - depositado nas ruas, em notícias, institutos de pesquisa e no Congresso.

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