Correio braziliense, n. 19335, 03/05/2016. Cidades, p. 23

No fim, a conta é delas

Quando as mulheres não são assassinadas e vivem sob ameaças e risco constante de agressões, somente elas carregam o peso da sobrevivência. São obrigadas a deixar para trás a vida construída, com amigos, famílias e bens, e precisam conviver com o medo e o perigo real de serem mortas. Autoridades insistem: é fundamental denunciar

Por: Camila Costa

 

Todos os dias, pelo menos uma mulher é encaminhada para a Casa Abrigo do Distrito Federal. A cada 24 horas, é arrancado dela o direito de viver como quer e onde acha melhor. O medo de serem espancadas novamente, ameaçadas outra vez, assassinadas, não as permite continuarem livres. No primeiro trimestre deste ano, 3.481 mulheres se dirigiram a uma delegacia a fim de pedir ajuda, vítimas de violência doméstica. Maltratadas dentro de um ambiente criado, naturalmente, para existir o amor. Mas há raiva, covardia. A fórmula para romper o ciclo é a denúncia.

A violência, quando não mata, destrói o dia a dia da mulher. Fere a alma. Tira-lhe a vontade de viver. Mesmo assim, muitas não têm a coragem de denunciar. Temem o outro dia, voltar para casa é um martírio. Dos cinco feminicídios registrados no DF no início deste ano, apenas uma das vítimas tinha feito boletim de ocorrência contra o agressor. Jane Fernandes Cunha, 21 anos, contava com medida protetiva. O ex-companheiro Jhonatan Pereira Alves, 23, que se matou após atirar na jovem, era ciumento, não aceitava o fim do casamento de seis anos e descumpria, à revelia da Justiça, a regra de não se aproximar de Jane. Desobediência responsável pela inquietude de muitas mulheres que denunciam.

Entre elas, Rosa*, 22 anos. Ela deixou a Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam), na 204/205 Sul, com o filho de 2 anos no colo, mas pareciam não querer voltar para casa. O homem com quem Rosa decidiu dividir a vida se tornou agressivo, nervoso e ciumento. Vieram as promessas de surra, mais tarde cumpridas. “Ele me agrediu fisicamente e, de um tempo para cá, disse que vai me matar, me mandar para o inferno. Disse também que publicaria fotos minhas na internet. Estou com medida protetiva, mas também com muito medo, apreensiva”, lamenta a jovem. Maria*, 26, passou desse estágio. Denunciou o marido depois de 15 anos de casamento, mas não teve paz. Ela está há três meses na Casa Abrigo. “Eu tinha esperança de que mudasse, mas não mudou. Tive que abandonar tudo”, confessa, emocionada (leia Depoimento).

Das 3.481 ocorrências registradas no DF no primeiro trimestre, as maiores incidências são de crime de ameaça, injúria e lesão corporal, nessa ordem. O movimento da Deam é sempre maior às segundas-feiras. Uma constatação da equipe. Depois do fim de semana, as vítimas conseguem um álibi para sair de casa sem chamar a atenção do agressor. O primeiro passo é saber ouvir as mulheres. Elas sempre querem entender como será o procedimento. A delegacia tem até 48 horas para encaminhar a ocorrência ao Judiciário. A Justiça, mais dois dias para decidir. O DF conta com 19 varas e 40 promotorias dedicadas aos casos. Nas histórias nas quais o risco de morte é inerente, o encaminhamento para a Casa Abrigo é feito pela própria Deam. Somente eles sabem o endereço.

Nas unidades policiais, durante a semana, também há atendimento especializado, das 12h às 19h. “Oferecemos a Casa Abrigo se sentirmos a necessidade, com trabalho psicossocial, jurídico. Temos casos positivos e é por isso que existimos”, explica a delegada-chefe da Deam, Ana Cristina Melo. A delegada reconhece os avanços com o surgimento das leis sobre o tema, como a Maria da Penha e, desde março de 2015, a do feminicídio. Mas Ana Cristina afirmar e reforça: denunciar é preciso. “O silêncio só reforça a atitude desse homem, a certeza dele da impunidade e de que está fazendo coisa correta. A denúncia é o único meio. É duro, mas é o único. Com a denúncia, essa mulher vai ter uma rede que está montada para ampará-la.”

Há pouco mais de 40 dias no cargo, a nova subsecretária de Política para Mulheres do GDF, Lúcia Bessa, reconhece o desafio. A gestora garante acompanhar de perto a questão, tratada como uma doença pelo governo. “Demonstra claramente que o machismo tem violentado nossas mulheres e está enraizado na nossa cultura”, observa. Ela lembra que o DF tem uma rede de atendimento formada por Cras, Creas, Centro de Atendimento Especializado da Mulher (Ceam), Casa da Mulher Brasileira, Casa Abrigo, Núcleo de Atendimento às Famílias em Situação de Violência Doméstica (NAFAVD). Um curso foi feito para qualificar servidores no atendimento à mulher. Um outro imóvel está sendo locado para reforçar a Casa Abrigo. Existe um grupo de trabalho permanente que discute a solução para o fim da cultura da violência de gênero. “É um compromisso nosso erradicar o feminicídio. É uma proposta ousada? É. Mas é assim que tem que ser”, afirma Lúcia.

 

Depoimento

“Eu deveria estar livre, não ele”

“Estou tentando achar algo melhor, porque cansei de esperar uma mudança. Ele me maltratava, ameaçava de morte e não poderia ensinar uma cultura diferente para os meus filhos, sendo que em casa eles viam violência. Minha atitude é para eles. Tínhamos carro, casa, moto, empresa, tudo. Minha vida era ótima. Ele era um bom pai, bom marido, trabalhava muito, mas as drogas acabaram com isso. E as coisas só pioraram. Ele me batia, dizia que me mataria, fazia violência psicológica, dizendo que qualquer coisa que acontecesse com ele seria culpa minha. Não acreditava que eu o denunciaria. Mas eu sabia que a lei me garantia segurança. E assim fiz. Eu deveria estar livre, não ele. Tive que abandonar amigos, família, minha vida. Enquanto isso, até festa ele faz na casa. Pretendo sair um dia, sem ele saber, para tentar refazer minha vida, do zero. É muito triste, mas é essa a nossa realidade. Os agressores têm a vida que eles bem entendem, enquanto nós temos que perder a nossa.”

Maria*, 26 anos, acolhida na Casa Abrigo do DF

 

Para saber mais

História de horror

A história da farmacêutica bioquímica Maria da Penha Maia Fernandes deu nome à Lei nº 11.340/2006. Ela foi vítima de violência doméstica durante 23 anos. Em 1983, o marido tentou assassiná-la por duas vezes. Na primeira vez, com um tiro de arma de fogo, deixando-a paraplégica. Na segunda, ele tentou matá-la por eletrocussão e afogamento. Após o caso, a farmacêutica tomou coragem e o denunciou. O marido de Maria da Penha foi punido somente após 19 anos de processo na Justiça. A lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar e estabelece medidas de assistência e proteção. É reconhecida pela ONU como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres.

 

Julgamento no Paranoá

Começa hoje o julgamento de José Otacílio Borges, acusado de tentar matar a então companheira, Cleide da Silva Santos. O caso será discutido pelo Tribunal do Júri do Paranoá. Em 2005, José esfaqueou a vítima por causa de dinheiro. “É de se ressaltar que o acusado ostenta três condenações transitadas em julgado”, afirmou o juiz na sentença.