Título: O que o BC já viu
Autor: Martins, Victor
Fonte: Correio Braziliense, 15/10/2011, Economia, p. 14

Importações explicam o PIB anêmico. Nova classe média, a força da inflação. Sinais de outra economia

A provável retração da economia no terceiro trimestre, antecipada pela prévia do Banco Central sobre o desempenho do Produto Interno Bruto (PIB) medido pelo seu índice mensal IBC-BR, chamou a atenção por se manifestar sem sinais flagrantes de desaceleração acentuada da inflação e do nível de emprego. Em situações passadas, inflação em baixa e desemprego em alta costumavam anteceder a queda do PIB.

O índice do BC, que busca emular a metodologia aplicada pelo IBGE no cálculo do PIB, indica retração da atividade econômica de 0,53% em agosto em relação a julho, perfazendo o terceiro mês em queda.

Em doze meses até agosto, a economia, segundo tal índice, cresceu 4,07%, vindo de 4,52% até julho e 4,89% até junho. A trajetória é nitidamente cadente. Nessa toada, o crescimento do PIB no ano não deve passar dos 3,5% previstos pelo BC, contra 7,5% em 2010.

Devido à defasagem do IBGE na apuração do índice oficial, só em 6 de dezembro se vai saber o desempenho do PIB no terceiro trimestre — e, no início de março, o comportamento da economia em 2011. Isso é normal. Mas até lá o governo e as empresas têm de se virar com o melhor instrumental disponível para projeções. Elas estão agora na faixa de 3% a 3,8% em relação ao crescimento do PIB este ano.

Sem o número exato sobre a situação da atividade econômica e seus desdobramentos sobre a inflação, mas com uma boa percepção sobre a tendência, o BC decide na quarta-feira a nova medida da Selic. Em seu último encontro, no fim de agosto, encerrou o ciclo de alta e cortou a taxa de juro básica de 12,5% para 12%, detonando uma onda de críticas histéricas de economistas e do mercado financeiro.

Com a inflação já distante da meta central no ano (4,5%) e acima do teto de variação definido pelo governo (6,5%), estando em 7,31% até setembro, a maioria da chamada "comunidade da Selic" caçoou do argumento do BC, segundo o qual a distensão dos juros antecipava a piora da crise global, implicando a desinflação das commodities.

A crise é medonha na Europa. Mas não está claro que vai implicar um segundo período de recessão nem bem o mundo saiu do anterior, iniciado nos EUA no fim de 2007. Para ter a cara feia pintada pelo BC e, sobretudo, definhar o crescimento econômico e desinchar a inflação no país, a crise precisará ser aguda nos EUA e na China. Ninguém descarta tal cenário. Só que ele ainda não aconteceu.

Um fenômeno inédito Isso significa que a atual desaceleração do crescimento se deve ao aumento da Selic de 10,75%, em janeiro, a 12,50%; ao controle do crédito ao consumo e ao aumento da retenção de depósitos da banca no fim de 2010; ao contingenciamento do gasto público; e, menos falado, ao vazamento de parcelas do consumo em alta para as importações, o que reduz o ritmo do PIB, mas não, necessariamente, da demanda, portanto, do emprego, se o setor de serviços (consumo de telefonia, internet, alimentação fora de casa, entretenimento, beleza pessoal, atividades financeiras etc.) estiver bombando.

A resistência do emprego e da inflação, que cresce abaixo da dos preços dos serviços desde 2006, se deve a esse fenômeno. Inédito, já que resultante da ascensão da chamada "nova classe média" — o pessoal do piso da pirâmide de renda beneficiado pelas políticas sociais, como Bolsa Família, e aumentos reais do salário mínimo.

O social mudou tudo A inflação em doze meses até setembro acumula alta de 7,31%, mas a de serviços cresceu pouco menos que 10%. Pesquisa do instituto Data Popular detectou que o padrão de consumo do novo consumidor é maior por itens de serviços, absorvendo 65% da renda disponível, que com bens de consumo (35%). Nove anos atrás a relação era quase paritária. Esse movimento tem mais de uma consequência.

O setor de serviços é o maior empregador entre todos os segmentos da economia. O processo, assim, é autoalimentado. Não é também uma atividade passível de ter a oferta complementada por importações.

Impotência da Selic Agora, basta ir somando os pedaços do quebra-cabeça para entender a desaceleração do PIB e a força da inflação. Tome-se a Selic: seu efeito é nenhum sobre a renda de quase metade da chamada população economicamente ativa (PEA). Funcionários públicos, aposentados, os atendidos pelo Bolsa Família são cerca de 50 milhões.

Não há risco de que percam a renda, e ela tem tido aumentos acima da inflação, em média. Pelo lado da oferta, o PIB fraqueja desde 2010, refletindo a estagnação da produção industrial e a demanda suprida por importações. Frente a este quadro, que a crise externa pode piorar, a Selic é impotente. É preciso pensar em algo novo.

O grande descompasso Em resumo, a política econômica típica está diante de duas notas destoantes. Uma é o que o economista Gray Newman, do Banco Morgan Stanley, chama de "grande descompasso": indústria fraca e demanda forte, enraizada nas políticas de transferência de renda a partir das contas fiscais e nos aumentos reais do salário mínimo.

Outra é que o regime de metas de inflação operado com juros não é mais funcional. Não atinge o crédito subsidiado na banca estatal, o crédito consignado e a renda das famílias dependentes do Estado. O problema não é seu conceito, mas o instrumento. O país precisa de parâmetros de longo prazo, como o da meta de inflação. Isso não muda. A Selic como instrumento único de ajuste é que não satisfaz.