O bebê que luta contra o tempo por um coração

Vinicius Sassine

05/06/2016

 

 

Falta de transporte aéreo agrava cenário em Fortaleza

 

De seus 9 meses de vida, Ana Kemely Albuquerque passou oito meses e meio dentro de um hospital, em Fortaleza. Ana Kemely é um bebê miúdo (pesa 4,5 quilos), com uma respiração cansada, mas “com muita vida nos olhos”, como diz a mãe, Ana Caroline Albuquerque, de 23 anos. A menina nasceu sem o lado esquerdo do coração. Sofreu paradas cardíacas sucessivas, uma convulsão, duas cirurgias. Está na lista de espera por um coração novo desde 20 de abril. Não pode esperar.

— No quarto dia de vida, ela sofreu a primeira parada. Ficou entubada. Soube da cardiopatia, que era algo gravíssimo. Ela passou um mês na UTI e fez a primeira cirurgia. Os médicos me disseram que ela poderia não sair viva de lá — diz Caroline, que vive com a filha e os pais na periferia de Fortaleza.

A fila de transplante de coração para crianças é arrastada. Faltam doadores, principalmente em razão da forte resistência de pais em doar órgãos no momento da perda de filhos crianças ou adolescentes. A falta de transporte para órgãos que surgem em outros estados e a corrida contra o tempo — são apenas quatro horas para o coração sair de um peito a outro — agravam este cenário.

O Ceará concentra filas de pacientes do Norte e de boa parte do Nordeste. Recife e Salvador dividem essa demanda. O governo local oferece aeronaves para buscar órgãos doados em Sobral e Juazeiro do Norte, populosas cidades cearenses, mas a medida não é suficiente. Praticamente não há captação de órgãos fora do estado.

Em 2014, a Central Nacional de Transplante (CNT) ofereceu pelo menos dois corações a Fortaleza, um doado em Campina Grande (PB) e outro em Natal. Mas não houve captação em tempo hábil por falta de transporte aéreo. A Força Aérea Brasileira (FAB) recusou-se a fornecer aeronaves.

As equipes médicas nos ambulatórios de transplante de coração e fígado de Fortaleza, que estão entre os maiores e mais importantes do país, têm como rotina não contar com órgãos de outros estados. A recusa é quase instantânea. Três médicos coordenadores dos ambulatórios dizem que a melhoria do transporte aéreo diminuiria o tempo de espera nas filas.

TAXA DE MORTALIDADE ALTA

No ano passado, foram transportados em voos comerciais apenas 37 corações, oito pâncreas e dois pulmões, o que revela a dependência dos aviões da FAB no caso desses órgãos. Em 2015, segundo dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), 236 pacientes estavam inscritos na lista à espera de coração. A fila tinha 49 meninos e meninas aguardando o mesmo órgão. As taxas de mortalidade foram elevadas: de 33,3% entre adultos e de 27% entre crianças.

O Brasil fez 353 transplantes de coração em 2015, sendo 33 em crianças. Apenas quatro entre dez pacientes pediátricos que entraram na fila no ano passado conseguiram um coração novo. Ana Kemely é a criança que entrou mais recentemente na fila por um coração no Ceará.

— Penso em tudo que ela já passou. Se ela não desistiu, eu não posso desistir — diz a mãe.

Aos 14 anos, Afonso Rerison de Souza está pela segunda vez numa lista de espera por um coração. No Hospital de Messejana, em Fortaleza, ele conhece praticamente toda a equipe médica. É o mesmo hospital que conduz o tratamento de Ana Kemely.

A primeira vez na fila durou quase um ano. A mãe de Rerison, Antônia Aguiar da Silva, de 34 anos, decidiu retirá-lo da lista e retornar a Tianguá (CE), a 317 quilômetros de Fortaleza, porque estava grávida. O bebê, Francisco Antônio, já completou 1 ano e 9 meses, e a família está de volta à capital para Rerison esperar por um coração.

Rerison tem uma cardiopatia congênita considerada grave pelos médicos. A vida em Fortaleza o afastou da escola, dos amigos, do futebol e da bicicleta. Depois de receber o coração, eu queria ser jogador de futebol, mas sei que não posso. Aqui tinha um jogador de futebol que teve de parar de jogar — diz o garoto.

Para a médica Klébia Castelo Branco, do serviço de transplante cardíaco pediátrico, um incremento no transporte aéreo aumentaria “sem sombra de dúvidas” as chances das crianças. O Messejana fez nove transplantes de coração neste ano, dois em crianças. Para o médico João David Neto, coordenador da unidade de transplante de coração, a conexão com outros estados diminuiria a fila de espera:

— Se houvesse mais disponibilidade de aeronaves, a lista seria reduzida.

 

 

O globo, n. 30253, 05/06/2016. País, p. 9.