Quase mil órgãos desperdiçados

Vinicius Sassine

06/06/2016

 
 
Falta de transporte para equipes médicas leva à recusa de corações, fígados, pulmões, pâncreas e rins
-BRASÍLIA E FORTALEZA- A falta de transporte para equipes médicas e órgãos já captados fez o sistema de transplante deixar de aproveitar 982 ofertas feitas ao longo de cinco anos, de 2011 a 2015, o que significa que há uma recusa de órgão a cada dois dias em razão de entraves logísticos. O levantamento inédito, feito pela Central Nacional de Transplantes (CNT) e ainda mantido fora dos relatórios estatísticos oficiais sobre a área no país, revela que o problema da falta de transporte não se restringe às negativas da Força Aérea Brasileira (FAB) para deslocar órgãos entre os estados.

O GLOBO mostrou ontem que a FAB se recusou a transportar 153 corações, fígados, pulmões, pâncreas, rins e ossos de 2013 a 2015. No mesmo período, levando em conta outros fatores relativos ao deslocamento entre origem e destino de um órgão, as recusas chegam a 650.

Coração, fígado e pâncreas lideram a lista de órgãos recusados. Um coração tem qualidade para transplante dentro de intervalo de quatro horas sem irrigação sanguínea. É uma luta contra o tempo — inglória em boa parte das vezes. Por falta de transporte — não só aéreo, mas também para levar o órgão de um hospital até um aeroporto, por exemplo —, em 5 anos a CNT recusou 347 corações ofertados, 35,3% do total recusado; em média, uma recusa a cada 5 dias. A média para fígado é um por semana. O número de recusas por razões logísticas subiu 42,4% entre 2011 e 2015.

Os dados foram obtidos via Lei de Acesso à Informação. A CNT é a responsável, no Sistema Nacional de Transplantes (SNT), por providenciar o transporte do órgão e fazer a oferta às centrais de regulação nos estados. Primeiro, ela recebe das centrais ofertas de órgãos que não serão aproveitados nesses estados. Depois, dispara e-mails a outras centrais já com as rotas de voos comerciais que poderão ser usadas. Se não há rota adequada, as centrais locais são informadas pela CNT. Caso ainda assim as equipes mantenham interesse pelo órgão, um pedido de transporte é feito à FAB, nos casos de coração, pulmão, fígado e pâncreas.

“SITUAÇÃO É ALARMANTE”, DIZ PROCURADORA

Em fevereiro deste ano, em investigação iniciada após O GLOBO revelar recusa da FAB em buscar um coração a um garoto de 12 anos em Brasília, o Ministério Público Federal questionou a coordenação-geral do SNT sobre a quantidade de “situações semelhantes à referida na reportagem” em 2014 e 2015. “No ano de 2014 foram 70 recusas para coração por motivo de falta de logística (transporte) e no ano de 2015 foram 71 recusas de coração pelo mesmo motivo”, disse a coordenação.

Gabriel aguardava na fila por um coração e morreu 14 dias após a recusa da FAB, em janeiro. Os dados fornecidos à procuradora da República Luciana Loureiro são os mesmos entregues ao GLOBO. Em abril, a procuradora moveu ação civil pública na Justiça Federal em Brasília pedindo o fornecimento de transporte pelo governo federal sempre que houver oferta de órgão. A Justiça proferiu decisão liminar concordando com o pedido.

“Enquanto aeronaves da FAB — disponíveis para voo — ficam paradas em solo sem utilidade (ou são utilizadas para deslocamentos não urgentes de autoridades diversas), perdem-se corações (70 em 2014; 71, em 2015), pulmões e vidas, porque o Sistema Nacional de Transplantes não tem, no momento, outra alternativa logística de transporte interestadual de órgãos tão sensíveis à disposição”, escreveu a procuradora na ação. “Resta claro que a situação é alarmante e precisa ser corrigida. O sistema não dispõe de logística eficaz, segura e em pleno funcionamento para transporte de órgãos com curtíssimo tempo de isquemia (a exemplo de coração e pulmão) entre os estados”, continuou.

Denilson Oliveira Araújo, de 4 anos, está na fila do coração em Fortaleza com mais três crianças, há 8 meses. Os pais, Domingos José, de 30, e Maria de Jesus Araújo, de 20, mudaram-se do interior do Piauí para uma casa próxima ao Hospital de Messejana, em Fortaleza, onde é feito o acompanhamento.

Domingos era agricultor no Piauí. Hoje faz “bicos” em Fortaleza, com renda de R$ 500 por mês, mais benefício de R$ 1.113 pago em casos de tratamento fora de domicílio — atrasado há 4 meses.

— A gente tem de esperar o celular tocar. Na semana retrasada ligaram e falaram que surgiu um coração. Depois disseram que não deu certo. É muito difícil ver o filho da gente na lista de espera. Sabe Deus quando vai aparecer — diz Domingos.

As quatro casas coladas ao imóvel onde Denilson mora com os pais abrigam pacientes à espera de pulmão. Os vizinhos deixaram as vidas no Maranhão, em Pernambuco e no interior do Ceará para ficarem próximos do hospital.

— É aperreado morar aqui. Só o aluguel são R$ 500 — diz o pai de Denilson, que percebeu o cansaço do filho aos 2 anos: não comia, só dormia, até receber diagnóstico de cardiopatia que causava inchaço do coração. — Tem que morar perto do hospital. Fomos avisados que vai ser necessário de um a três anos, contando um ano após o transplante.

O Ministério da Saúde diz trabalhar para otimizar a logística do transplante, com assinaturas de acordos com companhias aéreas e incentivo a credenciamento de equipes. “O ministério mantém acordo, voluntário e solidário, de cooperação com todas as companhias aéreas, incluindo a FAB. Nos casos em que não há viabilidade logística ou operacional para transportar órgãos, cada central de transplante dos estados e do DF deve auxiliar o Ministério a encontrar soluções de transporte dos órgãos captados”, disse a pasta, pela assessoria de imprensa.

Segundo a pasta, há 27 centrais locais de notificação e distribuição, mais 460 centros de transplante e 1,2 mil equipes especializadas: “O Brasil é referência mundial, sendo o maior sistema público do mundo. O paciente tem acesso a exames preparatórios, cirurgia, acompanhamento e medicamentos pós-transplantes”.