No peito de Ana Júlia, o sucesso de um ato simples

Vinicius Sassine

30/06/2016

 

 

Reserva de aviões da FAB para transporte de órgãos salva menina de 8 anos e viabiliza 14 transplantes em três semanas

Os médicos que cuidam de Ana Júlia Aleixo, de 8 anos, já haviam tomado a decisão. Sem alternativas palpáveis, recorreriam a uma máquina para fazer funcionar o coração da menina. A alta dose da medicação não garantia mais as funções mínimas do órgão.

— A durabilidade desse procedimento é de 15 dias. Se falha ou não aparece doador no período, a gente perde o paciente — diz a médica Cristina Afiúne, coordenadora do transplante cardíaco pediátrico do Instituto de Cardiologia do Distrito Federal (ICDF).

A espera de Júlia por um transplante se aproximava dos seis meses. Nos últimos três, ela estava no grupo das prioridades nacionais, aguardando internada numa UTI do ICDF. A máquina é considerada uma última tentativa de sobrevida, um estímulo artificial às funções do coração, acometido por fibroses decorrentes de uma cardiopatia.

A partir das 2h30m do último dia 20, madrugada de uma segunda-feira, Júlia dispensava qualquer artificialidade para viver. Foi o horário em que começou a bater em definitivo em seu peito um coração novo e saudável. O órgão cruzou os céus de Minas Gerais, Goiás e DF, dentro de um avião da Força Aérea Brasileira (FAB), para levar vida a Júlia. Às vésperas do transplante, a menina havia deixado de comer, conversar e andar. Uma semana depois da cirurgia, caminha, sorri e faz planos.

— Para o futuro eu penso em muitas coisas. É outra vida, então são muitas coisas legais que eu estou pensando — diz a menina, que colocou tiara e batom discreto para falar com a equipe do GLOBO. A caminhada da UTI até a sala destinada à conversa ela fez praticamente sozinha.

DECRETO COM FORÇA DE LEI

Os transportes de órgãos para transplante — em especial o coração, o que mais desafia o tempo — eram uma exceção na FAB, como O GLOBO revelou numa série de reportagens publicadas nos dias 5, 6 e 7 deste mês. A Aeronáutica recusou transportar, entre 2013 e 2015, 153 corações, fígados, pulmões, pâncreas, rins e ossos.

Em resposta à revelação feita pelo jornal, no dia seguinte à publicação da primeira reportagem da série, o presidente interino, Michel Temer, editou um decreto, com força de lei, que obriga a disponibilidade exclusiva de pelo menos uma aeronave da FAB para o transporte de órgãos. Antes, a FAB só era obrigada a transportar autoridades.

Em três semanas de validade, os aviões da Aeronáutica fizeram 12 voos para captar 14 corações, fígados e pâncreas, em nove estados, até o dia 27 deste mês, conforme levantamento do Ministério da Saúde e da Aeronáutica. A maioria dos transplantes foi exitosa. Ao longo dos 365 dias de 2015, a FAB atendeu a apenas 24 solicitações de voos. Em três anos, houve 68 “sims” para 153 “nãos”.

Às 17h30m do dia 19, a Central Nacional de Transplantes (CNT) acionou a FAB para buscar um coração em Uberlândia (MG), a 430 quilômetros de Brasília. No topo da lista de espera, quase dependente a uma máquina, estava Júlia. A família de uma criança de 6 anos, que morreu num acidente, tomou a decisão de doar os órgãos.

— Não surgia nenhuma oportunidade. Doação para criança é bem difícil. Eu pensava: “Meu Deus, quando esse coração vai chegar?”. Eu chorava a noite toda — conta a mãe de Júlia, a diarista Maria Aparecida Leite, de 36 anos.

ALEGRIA COM O NOVO CORAÇÃO

Eram 19h quando quatro integrantes da equipe médica do ICDF, dois pilotos e um mecânico da FAB embarcaram na Base Aérea de Brasília, num jatinho Learjet 35, o mesmo que também transporta autoridades. Pousaram uma hora depois em Uberlândia. Às 23h, o avião decolou rumo a Brasília. Chegou 40 minutos depois. A cirurgia terminou às 2h30m.

Naquele dia, o piloto Vitor Almeida Freitas, de 31 anos, integrava a tripulação que fica de sobreaviso por 24 horas na Base Aérea. Coube a ele planejar os voos de ida e volta e pilotar o jato.

— Assim que eles chegam com o órgão, temos de estar prontos para acionar o motor. Existe uma motivação grande em fazer parte desse processo de salvar uma vida, de ser útil a alguém. Estreitamos as distâncias — afirma o tenente.

A distância relativamente curta entre Uberlândia e Brasília deu mais tranquilidade ao trabalho da equipe. O coração tem apenas quatro horas para sair de um peito a outro. Os fatores logísticos, para além da falta de avião nas rotas interestaduais, levaram o sistema de transplantes a deixar de aproveitar 982 órgãos em cinco anos, entre 2011 e 2015, como revelou a segunda reportagem da série publicada pelo GLOBO no começo deste mês.

Júlia foi para a cirurgia “emocionada”, como ela conta:

— Eu fiquei emocionada (quando soube que ia ganhar um coração novo). Era ruim antes do transplante. Eu via as pessoas correndo, brincando e eu não podia fazer nada. Aí ficava triste. Eu queria agradecer muito a quem decidiu doar. Foi muito corajoso.

A menina se recupera bem. Os médicos planejam para hoje a saída da UTI e mais 20 dias numa enfermaria, até receber alta. As chances de rejeição ao coração novo, maiores nos primeiros seis meses, variam de 30% a 40%.

— Ela não tem nenhum sintoma clínico ou ecocardiográfico de rejeição. Se tudo correr bem, terá vida normal, vai poder correr e brincar — diz a médica Cristina.

Júlia mora com os pais e três irmãos em Luziânia (GO), no entorno do DF. O pai vende picolé e água na porta de ministérios, entre eles o Ministério da Saúde. A família precisa pintar a casa e retirar o mofo para receber a menina de volta.

O sistema de transplante no Brasil é praticamente todo feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que responde por 95% dos procedimentos. Foi assim com o tratamento de Júlia, custeado pelo SUS. É um dos maiores sistemas públicos do mundo, com 23,6 mil transplantes em 2015. Somente com a medicação imunossupressora, destinada a 71,1 mil transplantados, o SUS gastou R$ 362 milhões em 2015, conforme o Ministério da Saúde. Mas falhas ocorrem, numa área sensível em que se corre contra o tempo.

Agora, outra Ana Júlia, de 7 anos, está na fila de espera em Brasília. Por conta de uma cardiopatia congênita, ela já fez cinco cirurgias cardíacas. O aniversário da menina é no próximo dia 13.

— Ela falou que vai ganhar um coração de aniversário — diz a médica do ICDF.

 

 

O globo, n. 30278, 30/06/2016. País, p. 8.