Controle de armas evitou 133 mil mortes

 

19/06/2016

Marco Grillo

 

O Estatuto do Desarmamento, alvo de resistências no Congresso, evitou 133.987 mortes entre 2004, quando entrou em vigor, e 2014, aponta um levantamento inédito. Enquanto pesquisadores defendem a restrição ao acesso às armas de fogo como medida essencial no controle à violência, projetos na Câmara e no Senado propõem a substituição da legislação por outra mais permissiva e autorizam o porte de arma a diversas categorias profissionais.

De acordo com o “Mapa da Violência 2016 - Homicídios por armas de fogo no Brasil”, a ser lançado nas próximas semanas, a lei em vigor foi responsável por estancar o ritmo de crescimento desse tipo de crime no país. A taxa, que subiu, em média, 8,1% ao ano entre 1980 e 2003, cresceu 2,2% anualmente de 2004 a 2014. O cálculo foi feito com base nas vidas que seriam perdidas caso o aumento seguisse na velocidade registrada no período anterior à lei.

— O que se pretendia com o Estatuto era estancar o crescimento dos homicídios, e isso foi alcançado. Agora, há o risco de relaxamento na legislação. A única finalidade da arma de fogo é matar — alerta o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, da Flacso Brasil, autor do “Mapa da Violência”.

Outro dado da pesquisa mostra que, entre 2003 e 2014, o número de negros mortos por armas de fogo subiu 46,9%. Já entre os brancos, houve queda de 26,1% no mesmo período.

A principal iniciativa contra o Estatuto é o projeto de lei 3.722/2012, que revoga o texto em vigor. A medida de mais impacto libera o porte de arma, hoje praticamente restrito às Forças Armadas e a policiais. Caso a proposta seja sancionada, cidadãos comuns poderão andar armados, desde que cumpram alguns requisitos — ter mais de 25 anos e comprovar capacidade técnica e aptidão psicológica, por exemplo.

 

RESTRIÇÕES A POSSE DE ARMAS NA MIRA

As restrições para a posse (ter arma em casa ou no ambiente de trabalho) também são reduzidas — hoje, é necessário que a Polícia Federal, responsável por emitir a licença, reconheça a “efetiva necessidade” no pleito pela arma. O projeto, já aprovado por uma comissão especial da Câmara, está pronto para ser apreciado em plenário. Não há ainda uma previsão sobre a data de votação.

Em paralelo, outras propostas defendem a flexibilização do acesso às armas. Levantamento do Instituto Sou da Paz registra que, apenas em 2015, 36 iniciativas com esse objetivo foram protocoladas na Câmara. O projeto de lei 704/ 2015, do deputado Ronaldo Benedet (PMDBSC), autoriza o porte de arma para advogados.

Em outra frente, a Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou a extensão do porte para oficiais de Justiça, auditores tributários e defensores públicos. Agentes de trânsito também poderão portar armas, segundo projeto de autoria do ex-deputado Tadeu Filipelli, pronto para ser apreciado no plenário do Senado.

Há ainda uma proposta do deputado Eduardo Bolsonaro (PSC-SP), que determina o empréstimo, pelo Estado, de uma arma para o cidadão que tenha tido sua arma apreendida em função de um ato não considerado ilegal, como casos de legítima defesa. Outros parlamentares atuantes são os deputados Alberto Fraga (DEMDF) e Onyx Lorenzoni (DEM-RS). Entre 2002 e 2014, a indústria armamentista doou R$ 10 milhões para campanhas — metade diretamente para candidatos à Câmara e ao Senado, segundo o Tribunal Superior Eleitoral.

Os defensores de leis menos rígidas afirmam que mais armas em circulação representariam menos crimes, porque inibiriam criminosos. Especialistas em segurança pública contestam o argumento e frisam que não há comprovação científica dessa relação. Ao contrário: pesquisas indicam que o aumento no número de armas leva ao crescimento de ocorrências criminais.

 

MAIS ARMAS, MAIS HOMICÍDIOS, CONCLUI ESTUDO

Um artigo publicado este ano pela Universidade de Oxford analisou 130 pesquisas, em dez países, e atestou que leis que limitam o acesso a armamentos estão relacionadas com quedas nas mortes por armas de fogo. O pesquisador do Ipea Daniel Cerqueira, autor de uma tese de doutorado sobre o assunto, analisou estatísticas do estado de São Paulo entre 2001 e 2007 e concluiu que o aumento de 1% no número de armas provoca um crescimento de 2% nos homicídios.

— Outras pesquisas apontam na mesma direção, o que dá uma maior certeza de que aquilo está refletido na realidade. A maior difusão de armas gera mais risco para a sociedade — afirma.

A pesquisadora Michele dos Ramos, do Instituto Igarapé, critica a falta de evidências estatísticas nos projetos que estendem o porte de armas para determinadas profissões, sob a alegação de risco.

— Os projetos não apresentam dados sobre a vitimização dessas categorias e ignoram as mortes em categorias com porte, como os policiais. Os estudos mostram que as armas não são um bom instrumento de defesa.

O deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC), autor do projeto que revoga o Estatuto, diz que os homicídios por arma de fogo deveriam ter diminuído após a lei, o que não ocorreu.

— Não quero armar a população. Meu objetivo é garantir o direito à legítima defesa. Na estatística não entra quem tem uma arma, dá um tiro para cima e assusta o ladrão. Caso as pessoas de bem não estejam treinadas para se proteger, os massacres vão ser cada vez mais comuns — afirma.

 

 
PROJETOS
 

PL 3.722/2012

Autor: deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC)

O QUE É:

Revoga o Estatuto do Desarmamento, facilita o acesso às armas de fogo e volta a permitir o porte de arma para a população civil

Estágio: Aprovado pela comissão especial formada para analisar o tema, está pronto para ser votado no plenário da Câmara

PL 704/2015

Autor: deputado Ronaldo Benedet (PMDB-SC)

O QUE É:

Autoriza o porte de arma para advogados

Estágio: Aprovado pela Comissão de Segurança Pública da Câmara, aguarda a definição do relator que vai cuidar da matéria na Comissão de Constituição e Justiça

PL 3.260/2015

Autor: deputado Eduardo Bolsonaro (PSC-SP)

O QUE É:

Determina que o Estado empreste uma arma de fogo a uma pessoa cuja arma tenha sido apreendida em função de ato em que a lei exclua a ilicitude, como nos casos de legítima defesa

Estágio: Aguardando o parecer do relator na Comissão de Segurança Pública

PLC 30/2007

Autor: deputado Nelson Pellegrino (PT-BA). Hoje licenciado

O QUE É:

Estende o porte de arma para oficiais de Justiça, auditores tributários e defensores públicos

Estágio: O projeto foi aprovado na Comissão de Direitos Humanos do Senado e foi enviado para a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, onde será relatado pelo senador Hélio José (PMDB-DF)

 

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Brasil tem 10% dos homicídios do mundo

 
19/06/2016
Marco Grillo

 

Um estudo publicado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2014 afirmou que 10% dos homicídios no mundo em 2012 ocorreram no Brasil. O país apresentou uma taxa de homicídios de 25,2 por 100 mil pessoas, a terceira pior da América do Sul, atrás de Venezuela (53,7) e Colômbia (30,8). De acordo com a pesquisa, Honduras foi considerado o local mais violento, com uma taxa de 90,4. Do outro lado do ranking, Mônaco e Liechtenstein apresentaram taxa zero de homicídios. Ao todo, dados de 219 países ou territórios foram analisados.

Nos Estados Unidos, a taxa ficou em 3,8 por 100 mil habitantes. O país é citado com frequência pelos defensores de uma legislação mais permissiva como um exemplo de que o livre acesso às armas inibe a criminalidade. O coordenador de advocacy do Instituto Sou da Paz, Felippe Angeli, contesta o argumento e afirma que o país deve ser comparado dentro do grupo de nações mais ricas. Entre os 15 países com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), os EUA apresentam a maior taxa de homicídios. Em segundo lugar, vem o Canadá, com 1,4. Cingapura e Islândia estão nas situações mais favoráveis, com índice de 0,3.

— Os EUA estão em situação distinta dentro deste grupo e têm aumentado o debate sobre o controle das armas, enquanto o Brasil caminha no sentido contrário — critica.

Após a tragédia na boate em Orlando, na Flórida, em que um atirador fez 49 vítimas, o presidente Barack Obama voltou a cobrar do Congresso medidas que dificultem o acesso da população às armas de fogo. De acordo com Angeli, pesquisas mostram que os estados americanos onde há mais restrições apresentam taxas menores de homicídios.

Em relação ao comércio de armas de fogo, não há um dado global consolidado, mas, com base em informações do Exército, o Instituto Sou da Paz afirma que 74.866 armas foram comercializadas no Brasil em 2013. Em 2004, primeiro ano do Estatuto, foram 30.515.

— Algumas hipóteses são leis que permitiram porte para auditores fiscais da Receita, guardas municipais e o aumento no número das empresas de segurança — avalia Angeli. (Marco Grillo)

 

O globo, n. 30.267, 19/06/2016. País, p. 6