Valor econômico, v. 17, n. 4059, 01/08/2016. Política, p. A7

CRESCE TOTAL DE INQUÉRITOS DE FORO PRIVILEGIADO

Por: Carolina Oms

Por Carolina Oms | De Brasília

 

São necessários 662 dias para que o Supremo Tribunal Federal (STF) analise uma acusação feita pelo Ministério Público. Nos últimos dez anos, esse foi o tempo médio que a Corte levou para transformar um inquérito contra uma autoridade em ação penal ou arquivá-lo. Se a denúncia for aceita, aqueles que têm o privilégio de serem julgados pelo Supremo, o chamado foro por prerrogativa de função, se tornam réus em uma ação penal.

Levantamento realizado pela Fundação Getulio Vargas (FGV) Rio a pedido do Valor, com base em dados do projeto "Supremo em Números", mostra que, nos últimos dez anos, depois de aceita a denúncia, o Supremo levou, em média, mais 945 dias para condenar ou absolver definitivamente estes réus. E o prazo vem se alongando. "Há um aumento gradual do tempo que o Supremo leva para analisar os processos criminais. A tendência é que estes temas ocupem cada vez mais tempo dos ministros", afirma o professor Ivar Hartmann, coordenador do projeto "Supremo em Números".

Nos últimos dez anos, a chegada de novos inquéritos ao Supremo cresceu 162 vezes, enquanto o número de novas ações penais subiu 57 vezes, de acordo com levantamento da FGV até 2015. Além disso, a chegada à Corte dos processos do mensalão, em 2005, e da Lava-Jato, em 2015, monopolizou as atenções e muitas vezes a pauta do Supremo. "O foro transformou o Supremo em uma corte criminal, fazendo que ele perca visibilidade por sua função de guarda da Constituição. Os processos no STF demoram a ser analisados, em muitos casos ocorre prescrição, gerando impunidade", critica o juiz federal Roberto Veloso, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

Apesar do forte aumento no número de processos criminais, o tempo que o Supremo leva para concluir uma ação penal aumentou, mas não na mesma proporção. Entre 2005 e 2015, a média de dias que uma ação penal levou para que a decisão transitasse em julgado, ou seja, depois da análise de todos os recursos possíveis, cresceu três vezes para, em média, 1.536 dias no ano passado.

A análise de denúncia é feita pelas duas turmas do STF, compostas de cinco ministros cada - o presidente do STF não participa. Somente um grupo de autoridades restrito, como presidente da República e presidentes de Câmara e Senado, tem os casos julgados pelos 11 ministros da Corte.

Já o prazo de tramitação de um inquérito, desde o início da investigação até a denúncia do Ministério Público ou o pedido de arquivamento, ficou praticamente estável (ver gráfico). Em 2005, a média foi de 885 dias e, em 2015, o prazo foi de 648 dias. Se, após a apuração, o MP encontra elementos de prova contra o suspeito, ele faz denúncia. Existe ainda a possibilidade de que o próprio Ministério Público, diante da ausência de provas, por exemplo, peça o arquivamento das investigações.

Segundo o professor Ivar Hartmann, o aumento no tempo de análise dos inquéritos não ocorre na mesma proporção porque o Supremo costuma ampliar o tamanho dos gabinetes quando ocorre um aumento no volume de processos. Os inquéritos são tocados unicamente pelo gabinete do ministro-relator e o caso só vai para turmas ou plenário para os julgamentos. No caso do ministro Teori Zavascki, por exemplo, dois juízes auxiliares foram designados para ajudá-lo nos processos sobre a Lava-Jato, que já chegam a 38 inquéritos, seis denúncias e três ações penais.

Cabe destacar, no entanto, que não depende somente do Supremo a velocidade na tramitação dos processos. Variáveis como número de envolvidos, rapidez da Procuradoria-Geral da República (PGR), número de recursos interpostos pela defesa, entre outros, interferem na tramitação. De acordo com o último relatório publicado pelo "Supremo em Números", a partir do início dos anos 2000, o número de dias em que os processos eram mantidos na PGR para análise foi reduzido "de maneira forte e generalizada, em todas as classes processuais". Em 2005, o tempo de vista à PGR nos inquéritos foi de, em média, de 75 dias. Dez anos depois, este prazo caiu para 39 dias.

No Supremo, o ministro Luís Roberto Barroso tem sido o principal defensor de mudanças no foro privilegiado. Para ele, o foro é uma "reminiscência aristocrática, que dá privilégio a alguns, sem um fundamento razoável". Ele afirma ainda que, por ser uma corte constitucional, o STF não foi concebido para funcionar como juízo criminal e não possui estrutura para isso. Só o julgamento da ação penal do mensalão, exemplifica ele, ocupou o tribunal por um ano e meio, em 69 sessões. O ministro defende que seja criada uma vara especial em Brasília (DF) para julgar políticos com foro. Ela teria à frente um juiz escolhido pelo STF para centralizar as ações penais, com um mandato de dois anos e auxiliares para ajudá-lo.

Barroso afirma que o foro é causa frequente de impunidade, tanto pela demora quanto pela possibilidade de que o investigado renuncie ao mandato, fazendo com que seu processo, muitas vezes em vias de conclusão, vá para a primeira instância, onde a tramitação terá que recomeçar. De acordo com os dados levantados pelo professor Hartmann, entre 2005 e 2015, cerca de metade das ações penais prescreveram ou tiveram que ser remetidas a outros tribunais por perda de mandato ou função - o número pode oscilar em função das decisões que estão em segredo de justiça ou que não constam no andamento processual da Corte.

O advogado Fabrício Campos, sócio do Oliveira Campos & Giori Advogados, discorda que o foro seja causa da impunidade. Nos casos de governadores processados, por exemplo, ele avalia que o fato de os inquéritos tramitarem no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que fica em Brasília, pode evitar que as influências locais influenciem o resultado. "O prefeito, ao ser processado pelo Tribunal de Justiça, encontrará um foro afastado daquele do juiz que atua no próprio município. Um deputado federal, ao encontrar seu foro no STF, deixa de eventualmente ficar sob o abrigo de magistrados locais sobre os quais possa exercer alguma ascendência", acrescenta.

"O foro por prerrogativa ainda é necessário por causa da irresponsabilidade de alguns integrantes do Ministério Público na feitura das denúncias e da falta de compromisso de alguns juízes criminais, quando recebem denúncias ineptas e mantêm ações penais sem o menor fundamento. Lamentavelmente o foro por prerrogativa ainda deve ser mantido por causa da falta de uma filtragem mais rigorosa da propositura das ações penais, onde qualquer acusação, por pior que seja sua articulação, algumas vezes é admitida facilmente pelos juízes de primeiro grau", diz.

O ministro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Gilmar Mendes, avalia que a multiplicação das investigações contra parlamentares tornou inevitável as mudanças no foro. "Cerca de um terço do Congresso é investigado, o que quase que impossibilita o desenvolvimento dos trabalho no Supremo", justifica. Ele ressalva, no entanto, que estes processos não poderiam ir para as instâncias inferiores da Justiça, "sem nenhuma cautela": "Temos que encontrar algum modo para não fragilizar as prerrogativas parlamentares. Certamente temos que reduzir o número de pessoas com prerrogativa de foro."

Já para o advogado Fernando Augusto Fernandes, sócio do Fernando Fernandes Advogados, o foro é decorrente de uma cultura de insegurança jurídica que existe no Brasil. "O objetivo do foro foi evitar a perseguição política, dar segurança para que decisões não sejam perseguidas por delegados de primeira instância". Apesar de defender o foro, ele acredita que somente o STJ seja competente para julgar políticos. Atualmente, o Supremo é responsável pelos processos envolvendo ministros do Executivo, membros do Congresso Nacional, ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) e seus próprios ministros. O STJ julga os crimes de governadores, desembargadores, além de juízes dos tribunais estaduais e federais.

Dados levantados pela comissão especial que discutiu a proposta de emenda à Constituição para eliminar o foro privilegiado, no entanto, mostram que o STJ enfrenta acusações similares ao Supremo sobre lentidão e impunidade. Entre 1998 e 2006, o STJ recebeu 483 processos envolvendo acusados com foro privilegiado - 16 pessoas foram julgadas, 5 condenadas, 11 absolvidas e 71 processos prescreveram. (Colaborou Raphael Di Cunto)