Título: O desafio democrático na Líbia
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Fonte: Correio Braziliense, 21/10/2011, Opinião, p. 14

A morte de Muamar Kadafi, refugiado desde a tomada de Trípoli, no fim de agosto, encerra um capítulo, mas não estabelece nova ordem política nem une a Líbia, menos ainda lança algum lampejo sobre as incertezas que pairam sobre o futuro do país. Depois que derrubou a monarquia e instalou uma ditadura que durou 42 anos, de 1969 a 2011, o líder controlou as 140 etnias nacionais à base da força e da cooptação. Perseguiu sem trégua — até à morte — os opositores, impôs o unipartidarismo, por meio do Congresso Geral do Povo, e não titubeou em promover sangrentos crimes contra a humanidade. Mesmo acuado, ameaçava reagir com um banho de sangue contra concidadãos.

Hoje, a unidade nacional é o maior desafio a ser alcançado. Só a partir daí será possível restabelecer a civilidade, estruturar e recuperar o país. Nesse sentido, pouco contribuem as imagens do corpo de Kadafi sendo arrastado pelas ruas da terra natal dele, Sirte, onde foi localizado e morto. Espécie de ode à violência, o ato simboliza a reapresentação da brutalidade justo pelas mãos daqueles que a deveriam repelir. É preciso atentar-se para a necessidade de construção de um governo democrático, o que pressupõe a conciliação entre os próprios núcleos dissidentes que empreenderam a revolução contra o tirano. Trata-se de empreitada extremamente complexa, dificultada mais ainda pela inexistência no país de instituições políticas ou sociais capazes de articular a pacificação.

Daí que a ascensão de regime aberto, solidário e justo jamais poderá prescindir da mobilização dos organismos internacionais, à frente a ONU, para ajudar o governo transitório a programar e executar a solução eleitoral. O apoio internacional deve começar pela suspensão das sanções impostas ao regime despótico de Kadafi. Ao mesmo tempo, urge recuperar a infraestrutura destruída ou danificada por combates, em especial a relacionada à exploração de petróleo e gás, maiores riquezas do país. Com a economia em frangalhos, a chama da esperança acesa pela Primavera Árabe corre sérios riscos de apagar-se, mantendo na escuridão as mais de uma centena de tribos e clãs nacionais, o que poderia terminar em sanguinária e interminável guerra civil.

À comunidade interna, o chamamento que se faz agora é que, encerrada a caçada ao inimigo comum, afastada para sempre a sombra de Muamar Kadafi, exorcize o passado e se apresse em definir caminho que reuna seus diversos interesses. O esforço imediato é pacificar o país, condição sine qua non também para pôr fim ao isolamento diplomático e, enfim, estabelecer uma independência de fato do povo líbio. Desde o fim da 2ª Guerra Mundial, a história da nação se divide entre um período de monarquia, em que padeceu sob forte influência dos Estados Unidos e do Reino Unido, e o absolutismo de oficiais nacionalistas liderados pelo coronel agora morto. É hora de soberania com liberdades democráticas.