Valor econômico, v. 17, n. 4052, 21/07/2016. Brasil, p. A2

Rigidez de gasto público levanta dúvidas sobre a eficácia do teto no longo prazo

Por: Sergio Lamucci

Por Sergio Lamucci | De São Paulo

 

O projeto que impõe um teto para os gastos da União é bem visto pela maior parte dos analistas que acompanham as contas públicas, mas alguns manifestam dúvidas quanto à viabilidade de a proposta ser cumprida num prazo mais longo.

Com o forte crescimento real dos benefícios previdenciários e assistenciais e o fato de que as despesas com educação e saúde terão como piso a inflação, os outros gastos terão que ser fortemente comprimidos para que o limite não seja superado. Pela proposta do governo, a expansão das despesas não financeiras da União terá de se limitar à variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do ano anterior.

Diretor do Centro de Cidadania Fiscal, Bernard Appy diz que, se o valor dos benefícios previdenciários e assistenciais da União for corrigido apenas pela inflação passada, os gastos com eles sobem cerca de 4% em termos reais no ano, apenas pelo aumento do número de beneficiários. Em 2015, eles equivaleram juntos a um pouco menos de 44% das despesas não financeiras da União, descontando a quitação de R$ 55,6 bilhões das "pedaladas" fiscais, os atrasos no pagamento aos bancos públicos.

Já educação e saúde correspondem a cerca de 17% do total de gastos do governo (incluídas as despesas dessas áreas com pessoal), e serão corrigidas pelo menos pelo IPCA do ano anterior. Por essa conta, sobram cerca 40% das despesas para serem cortadas, de modo que o teto não seja ultrapassado.

Os números deixam clara a urgência da reforma da Previdência. A questão é a dificuldade para aprovar mudanças que produzam impacto forte sobre a concessão de benefícios no curto prazo. Para o economista-chefe da JGP Gestão de Recursos, Fernando Rocha, provavelmente será necessário adotar uma regra de transição "palatável". Do ponto de vista fiscal, o melhor é que haja uma transição bem curta para a idade mínima de aposentadoria para quem já está no mercado de trabalho, mas isso é politicamente complicado.

Para o J.P. Morgan, o teto tende a exigir "um declínio insustentável nos gastos com pessoal e no investimento público", dada o impacto da demografia sobre a Previdência e restrições à capacidade do governo de cortar outras despesas. O projeto que limita gastos é passo importante para a consolidação fiscal, mas o caminho para a estabilidade das contas requer crescimento e reformas estruturais adicionais, escrevem os economistas Cassiana Fernandez e Cristiano Souza, que assinam o estudo.

"Em 2017 dá para cumprir a meta mesmo sem mudanças na Previdência, porque, pelo novo regime fiscal, a despesa será indexada à inflação de 2016, que será mais alta do que a de 2017", diz Appy. Além disso, a despesa deste ano está "inchada pelo pagamento de atrasados". A partir de 2018, porém, tende a ficar difícil cumprir a regra do teto sem alguma alteração na Previdência, diz Appy, ex-secretário de Política Econômica da Fazenda.

"Obviamente o governo sabe disso, e acredito que esteja levando em consideração na elaboração da reforma da Previdência", diz o economista. Ele lembra que algumas medidas podem ter impacto no curto prazo, "como a anunciada revisão na concessão de benefícios de auxílio doença e invalidez". Estimativa do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV indica que apenas em 2019 as despesas vão superar o teto, "caso não haja cortes que reduzam a expansão típica e vegetativa de alguns dos principais componentes da despesa".

Para Rocha, o fato de sobrar uma parcela relativamente pequena das despesas para serem cortadas indica que ou se fará "uma reforma radical do Estado brasileiro ou a regra do teto vai cair em algum momento". Ele considera a segunda hipótese mais provável.

Uma outra fonte de rigidez está nos gastos com pessoal. Para Rocha, é um "exercício de otimismo" acreditar que esses gastos vão crescer em linha com a inflação do ano anterior. A tendência, segundo ele, é avançar no ritmo do PIB nominal, o que implica algum aumento em termos reais. Nas estimativas do Planejamento, com o reajuste ao funcionalismo recém-aprovado, o gasto com pessoal deve continuar até 2018 no nível do ano passado em relação ao tamanho da economia, de 4,1% do PIB. "Além disso, o impacto dos reajustes é inferior à inflação e abaixo do setor privado", diz o ministério, afirmando que, "de 2011 a 2015, o reajuste médio do funcionalismo foi de 18%, enquanto que, no mesmo período, a inflação, pelo IPCA, foi de 40,6%".

A soma das despesas com benefícios previdenciários e assistenciais, saúde e educação e pessoal equivale a pouco mais de 75% dos gastos não financeiros da União. Com isso, três quartos dos dispêndios mostram rigidez, em alguns casos tendendo a subir acima da inflação, como os benefícios previdenciários e assistenciais.

Além disso, existe a possibilidade que o Congresso limite a margem de manobra do governo para decidir sobre outros gastos. Ao analisar o projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2017, por exemplo, a Comissão Mista de Orçamento aprovou um texto prevendo que os investimentos serão equivalentes ao valor gasto em 2016, corrigido pela inflação.

Para os economistas do J.P. Morgan, o teto não é suficiente para segurar a pressão sobre gastos no médio prazo. "Ele deve ser complementado por outras medidas, uma vez que alguns gastos obrigatórios, especialmente benefícios previdenciários, podem aumentar além do controle, tornando o limite de despesas não factível."

A nota do J.P. Morgan também mostra que o teto de gastos, sozinho, levará muito tempo para estabilizar a relação dívida bruta/PIB. Considerando que os juros reais (descontada a inflação) cairão gradualmente para 4,5% no longo prazo, uma taxa real de câmbio estável e um recuo aos poucos do CDS, uma espécie de seguro contra calotes, para o nível do fim de 2014, é difícil antever qualquer redução de curto prazo sob o novo regime fiscal, diz o banco.

"Nesse caso, o crescimento tem um papel muito mais claro. Se o PIB crescer apenas 2% ao ano, a dívida vai crescer como proporção do PIB quase até 2030, enquanto uma expansão de 3% estabiliza a dívida em 2025, colocando-a num lento declínio depois", aponta o relatório. Com um crescimento de 4%, a redução da dívida seria muito mais pronunciada e voltaria para os atuais níveis em 2030. Em maio, a dívida bruta ficou em 68,6% do PIB. "Se o governo quiser acelerar a estabilização do resultado primário e o retorno a 2,5% do PIB [o nível que detém o crescimento da dívida], precisa aumentar impostos e elevar receitas."