Despesas dos Estados com pessoal cresceram R$ 100 bilhões em 8 anos

 

24/07/2016
Alexa Salomão

 

Apesar de serem obrigados, por lei, a conter despesas com pessoal, vários Estados estouraram seus limites e essa conta cresceu em pelo menos R$ 100 bilhões de 2008 para cá - período em que o governo federal afrouxou o monitoramento das finanças estaduais. A alta é espantosa porque representa um crescimento real, acima da inflação, de 40%, e é quase o dobro dos R$ 58 bilhões de aumento de 2000 a 2007, quando se aplicou com mais rigor a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Apesar de gigantesco, a avaliação é que esse número pode ser ainda maior. Gastos com auxílio-paletó, auxílio-combustível, auxílio-moradia, precatórios com alimentação, terceirizados, prestadores de serviços por meio de contrato com organização social e até pensões e aposentadorias - enfim, uma série de despesas decorrentes de pessoal - podem não estar incluídas nessa cifra. “Não dá para saber”, diz Gustavo Morelli, diretor da consultoria Macroplan, que coordenou esse levantamento. Morelli explica que, ao longo dos anos, foram feitas diferentes “interpretações da lei” sobre o que entra ou não na conta, dificultando a análise da saúde financeira dos Estados.

Os especialistas em finanças não gostam de dizer que isso configura “maquiagem” ou que as interpretações criaram uma “caixa preta”. As secretarias de Fazenda conhecem os dados e fazem a prestação de contas dentro da lei. É fato que muitos critérios contrariam o manual do Tesouro Nacional, responsável por monitorar a aplicação da lei. Mas eles foram aprovados pelos Tribunais de Contas dos Estados ou conquistados em disputas na Justiça. Ainda assim, a maioria admite que houve uma “criatividade coletiva” na apresentação dos gastos.

“O que temos nos Estados é a pior das contabilidades criativas - a contabilidade criativa legal, pois interpretações da Lei de Responsabilidade Fiscal foram autorizadas pelos Tribunais de Contas dos Estados, pela Justiça e, em alguns casos, até pelo Tesouro”, diz Raul Velloso, especialista em contas públicas.

 

Índice . Para medir o peso do pessoal sobre o caixa dos Estados, a lei manda fazer uma conta elementar: dividir os gastos com a folha pela receita líquida corrente. O resultado é um indicador que não pode ser superior a 60%. As manobras consistem em contabilizar a menos as despesas e a mais as receitas, por meio das tais interpretações, para que o resultado da conta fique abaixo de 60%.

Para a economista Sol Garson, ex-subsecretária de Finanças do Rio e hoje responsável pela área fiscal da Macroplan, o Rio de Janeiro tem uma das interpretações mais criativas do País. Em 2015, para fechar a conta com a Previdência, usou cerca de R$ 3,6 bilhões de royalties de petróleo. A receita é instável e incerta, não tem relação com o esforço fiscal do Tesouro, mas o Estado e o Tribunal de Contas entendem que vale.

Há outra manobra comum, mas mais requintada. Estados e municípios recebem repasses do SUS destinados exclusivamente a pagamentos de serviços da rede privada. O dinheiro mal passa pelo caixa público e segue para o setor privado. “Mas a maioria dos Estados e municípios contabiliza como se o dinheiro fosse deles, eleva a receita corrente líquida, o que melhora o indicador”, diz Sol.

Durante muito tempo, os Estados preferiram defender seus critérios, ainda que duvidosos. Uma nova geração de secretários de Fazenda, porém, defende que é preciso rever a posição.

Quem puxa a fila é Ana Carla Abrão Costa, secretária de Fazenda de Goiás. Egressa do setor privado, ao assumir, mandou recalcular o indicador incluindo absolutamente todos os gastos com pessoal. Pelas regras da contabilidade oficialmente adotadas em Goiás, o indicador hoje está em cerca de 50%. Mas o cálculo sugerido por Ana Carla diz que é 80%. Ela reforça que a situação dos Estados é gravíssima.

Os gastos com pessoal crescem de 5% a 6%, ao ano, mesmo que não se contrate ninguém e não se dê um centavo de aumento. “Teremos vários Rios de Janeiro em três anos se nada for feito e estou convencida de que apenas com informações transparentes - e o debate pela sociedade - é que teremos condições de avançar nas correções”, diz Ana Carla. O governo tem uma nova proposta de cálculo, mais rigoroso, que poderia dar uma visão mais clara sobre os gastos.

Morelli reforça o alerta. A junção das duas faces do gasto com pessoal - os identificados e os ocultos - elevam a potência da bomba-relógio que é a folha. De um lado, está claro que os Estados contrataram e deram aumentos acima do recomendável, que pesam hoje e vão elevar o custo da Previdência. Por outro, de fato, não há clareza sobre o tamanho da encrenca.

 

Criatividade coletiva

Rio usou depósitos judiciais para cobrir a Previdência e a dívida de Minas Gerais encostou no teto “O que temos nos Estados é a pior das contabilidades criativas: a contabilidade criativa legal.”

Raul Velloso

ESPECIALISTA EM FINANÇAS PÚBLICAS

 

BOMBA RELÓGIO

● Os gastos com pessoal, ativos e inativos, nos Estados deram um salto após a crise de 2008. Daqui para frente, sem nenhum reajuste, essa despesa deve crescer até 6% acima da inflação

 

Gasto com pessoal*

Após a crise financeira internacional, em 2008, o governo Federal incentivou os Estados a contrair dívidas para investir. Com folga no caixa, os Estados foram lenientes nos reajustes salariais e na contratação de pessoal, elevando o gasto engessado com a folha, aposentadorias e pensões

 

Relação entre a despesa com pessoal e a receita corrente líquida

A Secretaria do Tesouro Nacional (STN) propõe um cálculo diferente. Mais rigoroso, ele revela que o gasto com pessoal é maior do que se vê. Vários Estados romperiam o limite legal, de 60%. Mas o critério pode ser insuficiente. Goiás, que fez uma conta ainda mais rigorosa mostra que o custo vai além

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Recessão antecipou crise fiscal que já era esperada

 

24/07/2016
Alexa Salomão

 

Os Estados brasileiros têm dramas fiscais distintos, mas a análise geral é que a recessão antecipou e exacerbou, simultaneamente, três grandes e conhecidos nós: o endividamento, a folha de pessoal na ativa e a Previdência.

“Os gastos vinham num crescimento violento, mas como a receita crescia e os Estados ainda foram liberados pelo governo federal para se endividarem, ninguém se importou.

Aí veio a recessão e escancarou o que já se sabia: era insustentável”, diz Raul Velloso, especialista em contas públicas.

A fonte secou e os efeitos estão aí. O Rio, para cobrir a Previdência em 2015, usou R$ 6,7 bilhões de depósitos judiciais. O Rio Grande do Sul atrasa o pagamento dos servidores . A dívida mineira encostou em 200% da receita, teto permitido em lei, e o Estado eleva o estoque de pagamento atrasados a fornecedores. O Espírito Santo tem baixo endividamento, a folha de pagamento dos servidores da ativa é arrumada, mas a Previdência já consome 14% do caixa. Em Alagoas, nos próximos cinco anos, quase 40% dos 40 mil servidores na ativa vão poder se aposentar e não se sabe de onde sairá o dinheiro se todos forem embora ao mesmo tempo.

A renegociação da dívida com o governo federal foi só um primeiro passo para sanar esse imbróglio.

“É preciso ainda que o Congresso aprove as novas regras e, depois, que seja contratada a nova renegociação, com adoção de um plano de ajuste fiscal, e que o governo federal ainda aprove a proposta para limitar o gasto dos Estados”, diz José Roberto Afonso, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas.

Ajustes. A etapa mais difícil, diz Afonso, será definir como cortar gastos, principalmente com a folha, e como revitalizar as receitas. Detalhe importante, na opinião dele: os governadores não conseguem fazer os ajustes sozinhos. “O raio de manobra dos Estados é estreito: será preciso que a União lidere o processo, que o Congresso aprove medidas duras e que a Justiça determine a aplicação.” O maior desafio será enfrentar a oposição dos servidores, que têm muita força política, diz o economista Nelson Marconi, coordenador executivo do Fórum de Economia da FGV.

“Greve na polícia, em postos de saúde ou escolas quebram as pernas de qualquer governador.

Será preciso muita negociação para fazer com que o funcionalismo entenda a gravidade do momento”, diz Marconi.

As agências de classificação de risco, que já cortaram as notas de Estados como Minas e Bahia, recomendam que, dessa vez, se façam reformas de longo prazo. “A melhor saída, seria a economia voltar a crescer para recompor a receita, mas isso não vai acontecer logo, então são necessárias reformas estruturais”, diz Paco Debonnaire, analista da Moody’s para ratings sub-soberanos. /A.S.

 

O Estado de São Paulo, n. 44840, 24/07/2016. Economia, p. B1