Saque na floresta

André Borges, Leonencio Nossa, Dida Sampaio e Hélvio Romero

14/07/2016

 

 

Estrutura financeira criminosa usa madeira ilegal para bancar pistolagem - Carretas carregadas de toras deixam fazenda em terra da União que é alvo de disputa e percorrem 30 km até madeireiras.

 

A economia da madeira ilegal chegou ao Vale Assombrado, uma região de floresta intocada e solo fértil na Serra do Cachimbo, norte de Mato Grosso. A parceria de madeireiros e grileiros banca a pistolagem e processos na Justiça. Dessa aliança resultam recursos intermináveis nos tribunais e o saque de angelins, andirobas e mognos.

Um dos alvos do mercado clandestino de toras é a Fazenda Araúna, uma área de 14.639 hectares, o equivalente a 14 mil campos de futebol, em Novo Mundo, norte de Mato Grosso. O saque de madeira da fazenda ocorre em meio à disputa entre uma família de ruralistas e pequenos agricultores sem terra. A retirada de espécies nobres, no entanto, é um crime sem autor. Ninguém assume o assassinato da floresta.

A corrida pelas terras e árvores da Araúna começou para valer em 2008, com a morte do médico Marcelo Bassan. Nos anos 1980, ele adquiriu um título de 5 mil hectares da fazenda e, para garantir a regularização do resto da terra, fez acordo com famílias de agricultores pobres, repassando a elas uma pequena parte. Enquanto abria 80 km de estrada e colocava quase 100 km de cercas, Bassan tentava regularizar toda a área. Mas morreu antes de conseguir.

Enquanto a União tenta rever a posse e os Bassan, incluir a terra na herança, madeireiros atuam. À espera de uma decisão final da Justiça, cem famílias de sem terra denunciam os cortes de árvores. O pequeno agricultor João Batista dos Reis, de 29 anos, casado, pai de um menino, e Marlon Cecom, de 27, solteiro, estão entre os que monitoram, à espreita, os depredadores.

Amigos em jogos de futebol e no trabalho de consertar cercas, eles ficaram encarregados de “espionar” a atuação de guaxebas (pistoleiros) e madeireiros.

Descobriram que a mata estava sendo derrubada e passaram a informação ao líder do acampamento, Antônio Bento, o Tonhaco, de 45 anos, que montou uma estratégia para achar a rota das madeiras derrubadas: ir até as bodegas ouvir histórias dos madeireiros. No fim das tardes de sábado e domingo, eles revelaram, caminhões saem com toras por uma porteira dos fundos da fazenda e percorrem 30 km até pequenas madeireiras no centro de Novo Mundo.

“O salário dos guaxebas é pago com dinheiro de madeira roubada”, denuncia Tonhaco.

A viagem do Estado à região ocorreu em fevereiro. Até hoje, a truculência tem dado as cartas por lá. No dia 21 de fevereiro, cinco encapuzados jogaram gasolina e atearam fogo no acampamento que os sem-terra montaram na estrada em frente à fazenda, após serem despejados pela polícia, levando terror a crianças e mulheres. Em um dos barracos incendiados estavam dois menores, que escaparam.

Motos e carros foram destruídos.

Os pistoleiros estavam à caça de Tonhaco.

O grupo dele ocupou parte da Araúna pela primeira vez em 2012. Montou barracos e iniciou plantios de banana, mandioca e milho. Marcelo Bassan Júnior, filho do médico morto, entrou com mandado para retirar os sem-terra. A juíza Adriana Sant’Anna Coningham, da Vara da Justiça Agrária de Mato Grosso, aceitou o pedido. O juiz federal em Sinop, Murilo Mendes, confirmou a decisão. Tonhaco, o líder dos sem-terra, reclama que a magistrada, por ser da Justiça Estadual, não poderia atuar em caso de terra da União. “Em Mato Grosso, a Justiça não olha o drama social.

São famílias em situação de vida difícil”, afirma. “Quer matar pode matar. A gente continua aqui até quando tiver vida.”

Espólio. O advogado Marcelo Bertoldo Barchet, do espólio de Marcelo Bassan, disse que o médico e sua família sempre buscaram resolver a questão da Araúna apenas na Justiça. Ele afirmou que, após a morte do médico, começou uma “movimentação política” para que pessoas invadissem a área.

“Em 2009, pedimos uma perícia para delimitar a área titulada.

A Justiça até hoje não designou sequer um perito.” Barchet reclama que os ocupantes entraram três vezes na fazenda, sendo duas após decisões da juíza a favor do espólio. “Pedimos a prisão dos invasores, mas a juíza disse que não era função dela.

Ninguém foi preso.” Ele afirmou que a polícia esteve diversas vezes na Araúna e não constatou a existência de homens armados e outras irregularidades.

Nas investigações, não se identificou entre os funcionários fisionomias de jagunços descritos pelas famílias. Barchet diz que o episódio da destruição do acampamento é “um factoide criado para mudar a situação do direito constituído”.

Também reclama da retirada de madeira, negando que isso tenha envolvimento de funcionários da fazenda. “Há uma situação de desrespeito à ordem. As pessoas são incentivadas por políticos e até religiosos. A presença do Estado é mínima.”