Valor econômico, v. 17, n. 4045, 12/07/2016. Política, p. A6

CNJ autoriza que juízes ministrem palestras com pagamento sigiloso

Por: Ricardo Mendonça

Por Ricardo Mendonça | De São Paulo

 

A partir de agora, juiz, desembargador ou ministro de tribunal superior que aceitar convite para ministrar palestra terá que informar, em até 30 dias, a data e o local de sua participação, o tema abordado e a entidade promotora do evento. Os dados deverão ser disponibilizados na internet para consulta de qualquer interessado. O magistrado não precisará informar, porém, a remuneração recebida. Também não há qualquer tipo de limite para o recebimento desse tipo de honorário.

A novas regras estão descritas na resolução 226 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do dia 14 de junho, que fixou o entendimento segundo o qual palestras ministradas por juízes são equivalentes ao exercício do magistério.

A proposta original de resolução sobre o assunto, elaborada pelo conselheiro do CNJ Carlos Eduardo Oliveira Dias, estabelecia que os valores recebidos por juízes em palestras deveriam ser sempre informados ao respectivo tribunal e colocados na internet. A retirada desse dispositivo foi feita a pedido do presidente do órgão, o também presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski.

A atuação de Lewandowski contra a publicidade dos valores ficou clara quando o tema foi colocado em pauta na 233ª sessão ordinária do CNJ: "Quando examinei a ata, havia um dispositivo [...] que obrigava o magistrado a veicular, expor, os honorários que ele recebia. Vossa excelência retirou essa expressão? Porque isso diz respeito à intimidade, à privacidade e diria até ao sigilo fiscal, né? Porque nós não somos obrigados a revelar quanto recebemos nas atividades privadas", disse. Oliveira Dias respondeu: "A preocupação que vossa excelência lançou foi devidamente considerada e nós ajustamos a redação."

Lewandowski reforçou então sua posição: "Evidentemente isso não imuniza os magistrados de eventuais abusos, estarão sempre sujeitos a uma atividade correcional. Mas uma atividade normal docente é uma atividade privada, presente na Constituição e na própria Lei Orgânica da Magistratura (Loman). E a remuneração que advém dessa atividade será evidentemente exposta num eventual processo disciplinar. Mas jamais em caráter ordinário."

A resolução do CNJ trata de eventuais palestras que o juiz ministrar fora de sua atividade funcional cotidiana. O salário convencional e auxílios -presumidamente maiores que honorários por palestras, pelo menos para a maioria- continuam públicos e disponíveis para consulta.

Mesmo assim, ao argumentar pelo sigilo dos valores das palestras, Lewandowski recorreu à questão da segurança dos magistrados: "A preocupação aqui é só resguardar a privacidade, a intimidade e a própria segurança. Porque hoje, quando nós divulgamos valores econômicos, nós estamos sujeitos, num país em crise, num país onde infelizmente a nossa segurança pública ainda não atingiu os níveis desejados... Então é preciso resguardar todos esses aspectos," disse.

A resolução também estabelece que o magistrado deve se declarar impedido de participar de julgamentos que tenham como parte a entidade que o contratou para palestrar. Caso não reconheça seu impedimento, diz a nova norma, a parte interessada poderá questionar a imparcialidade do juiz (promover a arguição, no jargão jurídico), petição que será analisada pelo órgão competente.

A discussão sobre palestras de juízes chegou ao CNJ a partir de uma reportagem publicada em 2015 na "Folha de S.Paulo" mostrando que quatro ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST) receberam dinheiro do Bradesco para palestrar no banco desde 2013, mas não se declaravam impedidos em processos que tinham a instituição como parte. O mais frequente era o ministro João Batista Brito Pereira, que recebeu R$ 161,8 mil por 12 palestras. Os outros eram Antonio José de Barros Levenhagen, R$ 12 mil por uma palestra; Guilherme Augusto Caputo Bastos, R$ 72 mil por seis falas; e Márcio Eurico Vitral Amaro, que informava ter recebido, mas sem citar o valor.

A reportagem motivou o deputado Rubens Bueno (PPS-PR) a apresentar um Pedido de Providências ao CNJ. Ao Valor, ele manifestou insatisfação com o teor da resolução produto de seu ofício. "Isso vai me obrigar a aprovar um projeto de lei", disse. "Quando levei o questionamento, era com o objetivo de o CNJ estabelecer que não teria nenhuma sinecura. Qual é a transparência de alguém que tem carreira de Estado e não divulga o quanto ganha?"

O advogado Ericson Crivelli, autor de um pedido no TST para que o ministro Caputo Bastos se afaste de um caso envolvendo o Bradesco e um de seus clientes, também reprovou. "Criaram uma norma que impede a transparência e o controle público", disse.

O tema também já gerou constrangimento para ministros do STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Uma apuração anterior do jornalista Frederico Vasconcelos, também na "Folha" em 2015, mostrou que o governo de Minas Gerais teria concordado em pagar R$ 40 mil por conferência aos ministros Luiz Fux (STF) e Luís Felipe Salomão (STJ), que falaram sobre o novo Código de Processo Civil. Quando a reportagem confirmou o fato, ambos afirmaram que devolveriam a remuneração.

A resolução que equipara palestras de juízes ao exercício do magistério soa conflitante com o artigo 26 da Loman. A legislação de 1979, ainda usada para regular várias situações no Judiciário, afirma que a única atividade extra permitida a um juiz é o "magistério superior, público ou particular". Na discussão que resultou na resolução, os conselheiros do CNJ não fizeram nenhuma consideração a respeito do significado da expressão "magistério superior" presente na Loman.

Oliveira Dias, o formulador da proposta aprovada, lembra que a Loman, embora ainda válida, foi editada "num contexto autoritário e sob uma Constituição que não vigora há mais de 30 anos". Segundo ele, "alguns itens precisam ser entendidos em conformidade com a nova Constituição". E o parágrafo único do artigo 95 da Carta de 1988, explica, só fala em "magistério", sem o completo "superior". Daí porque, segundo ele, faz sentido a ideia embutida na nova resolução segundo a qual "a participação de magistrados na condição de palestrante [...] é considerada atividade docente".

A nova resolução do CNJ vale para toda a magistratura nacional com exceção do Supremo. Como o STF não se submete às resoluções do Conselho, seus onze ministros não precisam informar nem as datas ou os contratantes das palestras que eventualmente concordem em proferir.

Por meio da Assessoria de Comunicação do STF, Lewandowski ressaltou que, por força da lei, o magistrado já é obrigado a enviar a declaração de Imposto de Renda ao respectivo tribunal e aos órgãos de controle competentes (tribunais de contas) anualmente.

"Ora, considerando tal dado, não se mostra correta a inferência de que não haveria fiscalização sobre esses valores", disse.

A reportagem perguntou se os onze ministros do STF divulgarão a agenda de palestras nos moldes da resolução do CNJ. Lewandowski respondeu que os ministros do STF não estão subordinados às resoluções do Conselho.