Discurso final

30/08/2016

 

 

‘Hoje eu só temo a morte da democracia’

 

Em cerca de 45 minutos, Dilma comparou o impeachment à perseguição que sofreu na ditadura, disse que o país está a um passo de um ‘golpe’ e fez ataques a Temer e Cunha

“Excelentíssimo senhor presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski; excelentíssimo senhor presidente do Senado Federal, Renan Calheiros; excelentíssimas senhoras senadoras e excelentíssimos senhores senadores; cidadãs e cidadãos de meu amado Brasil, no dia 1º de janeiro de 2015, assumi meu segundo mandato à Presidência da República Federativa do Brasil. Fui eleita por mais de 54 milhões de votos. Na minha posse, assumi o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, bem como o de observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a União, a integridade e a independência do Brasil.

Ao exercer a Presidência da República, respeitei fielmente o compromisso que assumi perante a Nação e aos que me elegeram. E me orgulho disso. Sempre acreditei na democracia e no estado de direito e sempre vi na Constituição de 1988 uma das grandes conquistas do nosso povo. Jamais atentaria contra o que acredito ou praticaria atos contrários aos interesses daqueles que me elegeram.

Nessa jornada, para me defender do impeachment, me aproximei ainda mais do povo. Tive oportunidade de ouvir o seu reconhecimento, de receber o seu carinho. Ouvi também críticas duras ao meu governo, a erros que foram cometidos e a medidas e políticas que não foram adotadas. Acolho essas críticas com humildade, até porque, como todos, tenho defeitos e cometo erros. Entre os meus defeitos não está a deslealdade e a covardia. Não traio os compromissos que assumo, os princípios que defendo ou os que lutam ao meu lado.

Na luta contra a ditadura, recebi, no meu corpo, as marcas da tortura. Amarguei, por anos, o sofrimento da prisão. Vi companheiros e companheiras sendo violentados e até assassinados. Na época, eu era muito jovem. Tinha muito a esperar da vida. Tinha medo da morte, das sequelas da tortura no meu corpo e na minha alma, mas não cedi. Resisti. Resisti à tempestade de terror que começava a me engolir, na escuridão dos tempos amargos em que o país vivia. Não mudei de lado. Apesar de receber o peso da injustiça nos meus ombros, continuei lutando pela democracia. Dediquei todos esses anos da minha vida à luta por uma sociedade sem ódios e intolerância. Lutei por uma sociedade livre de preconceitos e de discriminações. Lutei por uma sociedade onde não houvesse miséria ou excluídos. Lutei por um Brasil soberano, mais igual e onde houvesse justiça. Disso tenho orgulho. Quem acredita luta.

Aos quase 70 anos de idade, não seria agora, após ser mãe e avó, que abdicaria dos princípios que sempre me guiaram. Exercendo a Presidência da República, tenho honrado o compromisso com o meu país, com a democracia, com o estado de direito. Tenho sido intransigente na defesa da honestidade, na gestão da coisa pública.

Por isso, diante das acusações que contra mim são dirigidas neste processo, não posso deixar de sentir na boca, novamente, o gosto áspero e amargo da injustiça e do arbítrio. E por isso, como no passado, resisto. Não esperem de mim o obsequioso silêncio dos covardes. No passado, com as armas, e hoje, com a retórica jurídica, pretendem novamente atentar contra a democracia e o estado de direito.

Se alguns rasgam o seu passado e negociam as benesses do presente, que respondam perante a sua consciência e perante a história pelos atos que praticam. A mim cabe lamentar pelo que foram e pelo que se tornaram. E resistir, resistir sempre. Resistir para acordar as consciências ainda adormecidas, para que, juntos, finquemos o pé no terreno que está do lado certo da História, mesmo que o chão trema e ameace de novo nos engolir.

Não luto pelo meu mandato por vaidade ou por apego ao poder, como é próprio dos que não têm caráter, princípios ou utopias a conquistar. Luto pela democracia, pela verdade e pela justiça. Luto pelo povo do meu país, pelo seu bem-estar.

Muitos hoje me perguntam de onde vem a minha energia para prosseguir. Vem do que acredito. Posso olhar para trás e ver tudo que fizemos, olhar para frente e ver tudo que ainda precisamos e podemos fazer. O mais importante é que posso olhar pra mim mesma e ver a face de alguém que, mesmo marcada pelo tempo, tem forças pra defender suas ideias e seus direitos.

Sei que, em breve, e mais uma vez na vida, serei julgada. E é por ter a minha consciência absolutamente tranquila em relação ao que eu fiz, no exercício da Presidência da República, que venho pessoalmente à presença dos que me julgarão. Venho para olhar diretamente nos olhos de vossas excelências e dizer, com a serenidade dos que nada têm a esconder, que não cometi nenhum crime de responsabilidade; não cometi os crimes dos quais sou acusada injusta e arbitrariamente.

Hoje, o Brasil, o mundo e a História nos observam e aguardam o desfecho desse processo de impeachment. No passado da América Latina e do Brasil, sempre que interesses de setores da elite econômica e política foram feridos pelas urnas e não existiam razões jurídicas para uma destituição legítima, conspirações eram tramadas, resultando em golpes de estado.

O presidente Getúlio Vargas, que nos legou a CLT e a defesa do patrimônio nacional, sofreu uma implacável perseguição: a hedionda trama orquestrada pela chamada República do Galeão, que o levou ao suicídio. O presidente Juscelino Kubitschek, que construiu esta cidade, foi vítima de constantes e fracassadas tentativas de golpe, como ocorreu no episódio de Aragarças. O presidente João Goulart, defensor da democracia, dos direitos dos trabalhadores e das reformas de base, superou o golpe do parlamentarismo, mas foi deposto, e instaurou-se a ditadura militar em 1964.

Durante 20 anos vivemos o silêncio imposto pelo arbítrio, e a democracia foi varrida de nosso país. Milhões de brasileiros lutaram e reconquistaram o direito a eleições diretas. Hoje, mais uma vez, ao serem contrariados e feridos nas urnas os interesses de setores da elite econômica e política, nos vimos diante do risco de uma ruptura democrática.

Os padrões políticos dominantes no mundo repelem a violência explícita. Agora, a ruptura democrática se dá por meio da violência moral e de pretextos constitucionais, para que se empreste aparência de legitimidade ao governo que assume sem o amparo das urnas. Invoca-se a Constituição, para que o mundo das aparências encubra hipocritamente o mundo dos fatos. As provas produzidas deixam claro e inconteste que as acusações contra mim dirigidas são meros pretextos, embasados por uma frágil retórica jurídica.

Nos últimos dias, novos fatos evidenciaram outro aspecto da trama que caracteriza este processo de impeachment: o autor da representação, junto ao Tribunal de Contas da União, que motivou as acusações discutidas nesse processo foi reconhecido como suspeito pelo presidente do Supremo Tribunal Federal. Soube-se ainda, pelo depoimento do auditor responsável pelo parecer técnico, que ele havia ajudado a elaborar a própria representação que auditou. Fica clara a parcialidade, a trama na construção das teses por eles defendidas.

São pretextos, apenas pretextos para derrubar, por meio de um processo de impeachment, sem crime de responsabilidade, um governo legítimo, escolhido em eleição direta, com a participação de 110 milhões de brasileiros e brasileiras; o governo de uma mulher que ousou ganhar duas eleições presidenciais consecutivas.

São pretextos para viabilizar um golpe na Constituição, um golpe que, se consumado, resultará na eleição indireta de um governo usurpador, na eleição indireta de um governo que, já na sua interinidade, não tem mulheres comandando os seus ministérios, quando o povo nas urnas escolheu uma mulher para comandar o país. Um governo que dispensa os negros na sua composição ministerial e já revelou um profundo desprezo pelo programa escolhido e aprovado pelo povo em 2014.

Fui eleita presidenta por 54,5 milhões de votos para cumprir um programa cuja síntese está gravada nas palavras, nenhum direito a menos.

O que está em jogo no processo do impeachment não é apenas o meu mandato; o que está em jogo é o respeito às urnas, à vontade soberana do povo brasileiro e à Constituição.

O que está em jogo são as conquistas dos últimos 13 anos: os ganhos da população, das pessoas mais pobres e da classe média; a proteção às crianças; os jovens chegando às universidades e às escolas técnicas; a valorização do salário mínimo; os médicos atendendo à população; a realização do sonho da casa própria.

O que está em jogo é um investimento em obras para garantir a convivência com a seca no semiárido; é a conclusão do sonhado e esperado projeto de integração do São Francisco.

O que está em jogo é também a grande descoberta do Brasil: o pré-sal.

O que está em jogo é a inserção soberana de nosso país no cenário internacional pautada pela ética e pela busca de interesses comuns.

O que está em jogo é a autoestima dos brasileiros e brasileiras que resistiram aos ataques dos pessimistas de plantão à capacidade do país de realizar com sucesso a Copa do Mundo e as Olimpíadas e as Paralimpíadas. Repito: o que está em jogo é a autoestima dos brasileiros e brasileiras que resistiram aos ataques dos pessimistas de plantão à capacidade do país de realizar com sucesso a Copa do Mundo e as Olimpíadas e as Paralimpíadas.

O que está em jogo é a conquista da estabilidade que busca o equilíbrio fiscal, que busca o controle da inflação e não abre mão de programas sociais para a nossa população.

O que está em jogo é o futuro do país, a oportunidade e a esperança de avançar sempre mais.

Senhoras e senhores senadores, no presidencialismo, previsto na Constituição, na nossa Constituição, não basta a eventual perda de maioria parlamentar para afastar um presidente. Há que se configurar crime de responsabilidade. E está claro que não houve tal crime.

Não é legítimo, como querem os meus acusadores, afastar o chefe de Estado e de governo por não concordarem com o conjunto da obra.

Quem afasta o presidente pelo conjunto da obra é o povo — e só o povo — nas eleições. E, nas eleições, o programa de governo vencedor não foi este agora instalado, desenhado pelo governo interino e defendido pelos meus acusadores.

O que pretende o governo interino, se transmudado em efetivo, é um verdadeiro ataque às conquistas dos últimos anos.

Desvincular o piso das aposentadorias e pensões do salário mínimo será a destruição do maior instrumento de distribuição de renda do país que é a Previdência Social. O resultado será mais pobreza, mais mortalidade infantil e a decadência dos pequenos municípios pelo país afora.

A revisão dos direitos e garantias sociais previstos na CLT e a proibição do saque do Fundo de Garantia na demissão do trabalhador são ameaças que pairam sobre a população brasileira, caso prospere o impeachment sem crime de responsabilidade.

Conquistas importantes para as mulheres, os negros e as populações LGBT estarão comprometidas pela submissão a princípios ultraconservadores.

O nosso patrimônio estará em questão com os recursos e resultados do pré-sal, as riquezas naturais e minerais, sendo fortemente ameaçados e, em muitos casos, privatizados.

A ameaça mais assustadora desse processo de impeachment, sem crime de responsabilidade, é congelar por inacreditáveis 20 anos as despesas com saúde, educação, saneamento e habitação; é impedir que, por 20 anos, mais crianças e jovens tenham acesso às escolas; que, por 20 anos, as pessoas possam ter melhor atendimento à saúde; que, por 20 anos, as famílias possam sonhar com a casa própria.

Senhor presidente Ricardo Lewandowski, senhoras e senhores senadores, a verdade é que o resultado eleitoral de 2014 foi um rude golpe em setores da elite conservadora brasileira.

Desde a proclamação dos resultados eleitorais, os partidos que apoiavam o candidato derrotado nas eleições fizeram de tudo para impedir a minha posse e a estabilidade do meu governo. Disseram que as eleições haviam sido fraudadas, pediram auditoria nas urnas, impugnaram minhas contas eleitorais e, após a minha posse, buscaram, de forma desmedida, quaisquer fatos que pudessem justificar retoricamente um processo de impeachment.

Como é próprio das elites conservadoras e autoritárias, não viam, na vontade do povo, o elemento legitimador de um governo. Queriam o poder a qualquer preço. Tudo fizeram para desestabilizar a mim e ao meu governo. Só é possível compreender a gravidade da crise que assola o Brasil, desde 2015, levando-se em consideração a instabilidade política aguda que, desde a minha eleição, tem caracterizado o ambiente em que ocorrem o investimento e a produção de bens e serviços.

Não se procurou discutir e aprovar uma melhor proposta para o país. O que se pretendeu, permanentemente, foi a afirmação do quanto pior melhor, na busca obsessiva de se desgastar o governo, pouco importando os resultados danosos dessa questionável ação política para toda a população.

A possibilidade de impeachment tornou-se assunto central da pauta política e jornalística apenas dois meses após minha reeleição, apesar da evidente improcedência dos motivos para justificar esse movimento radical.

Nesse ambiente de turbulências e incertezas, o risco político permanente, provocado pelo ativismo de parcela considerável da oposição, acabou sendo elemento central para a retração do investimento e para o aprofundamento da crise econômica.

Deve ser também ressaltado que a busca de reequilíbrio fiscal, desde 2015, encontrou forte resistência na Câmara dos Deputados, à época presidida pelo deputado Eduardo Cunha. Os projetos enviados pelo governo foram rejeitados, parcial ou integralmente; pautas-bomba foram apresentadas e algumas aprovadas. As comissões permanentes da Câmara, em 2016, só funcionaram a partir do dia 5 de maio, ou seja, uma semana antes da aceitação do processo de impeachment pela comissão do Senado Federal.

Os senhores e senhoras senadores sabem que o funcionamento dessas comissões era e é absolutamente indispensável para a aprovação de matérias que interferem no cenário fiscal e possam encaminhar a saída para a crise.

Foi criado, assim, o desejado ambiente de instabilidade política propício à abertura do processo de impeachment sem crime de responsabilidade. Sem essas ações, o Brasil certamente estaria em uma situação melhor — política, econômica e fiscal — do que está hoje.

Muitos articularam e votaram contra propostas que, durante toda a vida, defenderam, sem pensar nas consequências que seus gestos trariam para o país e para o povo brasileiro. Queriam aproveitar a crise econômica, porque sabiam que, assim que meu governo viesse a superá-la, sua aspiração de acesso ao poder haveria de ficar sepultada por mais um longo período.

Mas, a bem da verdade, as forças oposicionistas somente conseguiram levar adiante o seu intento quando outra poderosa força política a eles se agregou, a força política dos que queriam evitar a continuidade da sangria de setores da classe política motivada pelas investigações sobre a corrupção e o desvio do dinheiro público.

É notório que, durante o meu governo e o do presidente Lula, foram dadas todas as condições para que as investigações fossem realizadas. Propusemos importantes leis que dotaram os órgãos competentes de condições para investigar e punir os culpados.

Assegurei a autonomia do Ministério Público. Não permiti qualquer interferência política na atuação da Polícia Federal. Contrariei interesses. Por isso, paguei e pago um elevado preço pessoal

pela postura que tive.

Arquitetaram a minha destituição, independentemente da existência de quaisquer fatos que pudessem justificá-la perante a nossa Constituição.

Encontraram, na pessoa do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, o vértice da sua aliança golpista. Articularam e viabilizaram a perda da maioria parlamentar do governo. Situações foram criadas, com o apoio escancarado de setores da mídia, para construir o clima político necessário para a desconstituição do resultado eleitoral de 2014.

Todos sabem que este processo de impeachment foi aberto por uma chantagem explícita do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, como chegou a reconhecer, em declarações à imprensa, um dos próprios denunciantes. Exigia aquele parlamentar que eu intercedesse para que deputados do meu partido não votassem pela abertura do seu processo de cassação.

Nunca aceitei, na minha vida, ameaças ou chantagens. Se não o fiz antes, não o faria na condição de presidenta da República.

É fato, porém, que não ter me curvado a essa chantagem motivou o recebimento da denúncia por crime de responsabilidade e abertura deste processo.

Se eu tivesse me acumpliciado com a improbidade e com o que há de pior na política brasileira, como muitos até hoje parecem não ter o menor pudor em fazê-lo, eu não correria o risco de ser condenada injustamente. Quem se acumplicia ao imoral e ao ilícito não tem respeitabilidade para governar o país. Quem age para poupar ou adiar o julgamento de uma pessoa que é acusada de enriquecer às custas do Estado brasileiro e do povo, que paga impostos, cedo ou tarde acabará pagando, perante à sociedade e à História, o preço de seu descompromisso com a ética.

Tenho, e todos sabem, muito orgulho. Todos sabem que não enriqueci no exercício de cargos públicos, que não desviei dinheiro público em meu governo em benefício próprio, nem de meus familiares, e que não possuo contas ou imóveis no exterior.

Sempre agi com absoluta probidade nos cargos públicos que ocupei ao longo da minha vida. Curiosamente, serei julgada, por crimes que não cometi, antes do julgamento do ex-presidente da Câmara, acusado de ter praticado gravíssimos atos ilícitos e que liderou as tramas e os ardis que alavancaram as ações voltadas à minha destituição.

Ironia da História? Não, de forma alguma. Tratase de uma ação deliberada que conta com o silêncio cúmplice de setores da grande mídia brasileira.

Viola-se a democracia e pune-se uma inocente. Este é o pano de fundo que marca o julgamento que será realizado pela vontade dos que lançam contra mim pretextos acusatórios infundados.

Estamos a um passo da consumação de uma grave ruptura institucional. Estamos a um passo da concretização de um verdadeiro golpe de Estado.

Senhoras e senhores senadores, vamos aos autos deste processo. Do que sou acusada? Quais foram os atentados à Constituição que cometi? Quais foram os crimes hediondos que pratiquei?

A primeira acusação refere-se à edição de três decretos de crédito suplementar sem autorização legislativa. Ao longo de todo o processo, mostramos que a edição desses decretos seguiu todas as regras legais. Respeitamos a previsão contida na Constituição, a meta definida na LDO e as autorizações estabelecidas no artigo 4º da Lei Orçamentária de 2015 aprovadas pelo Congresso Nacional.

Todas essas previsões legais foram respeitadas em relação aos três decretos. Eles apenas ofereceram alternativas para alocação dos mesmos limites, de empenho e financeiros, estabelecidos pelo decreto de contingenciamento, que não foram alterados. Repito: pelo decreto de contingenciamento, que não foram alterados. Por isso, não afetaram em nada a meta fiscal.

Ademais, em 2014, por iniciativa do próprio Executivo, o Congresso aprovou a inclusão na LDO da obrigatoriedade de que qualquer crédito aberto deve ter sua execução subordinada ao decreto de descontingenciamento, editado segundo as normas estabelecidas pela Lei Complementar de Responsabilidade Fiscal. E isso foi precisamente respeitado.

Não sei se por incompreensão ou por estratégia, as acusações feitas neste processo buscam atribuir a esses decretos nossos problemas fiscais. Ignoram ou escondem que os resultados fiscais negativos são consequência da desaceleração econômica e não a sua causa.

Escondem que, em 2015, com o agravamento da crise, tivemos uma expressiva queda de receita ao longo de todo o ano — foram R$ 180 bilhões a menos que o previsto na Lei Orçamentária.

Fazem questão de ignorar que realizamos, em 2015, o maior contingenciamento de nossa História. Cobram que, quando enviei ao Congresso, em julho de 2015, o pedido de autorização para reduzir a meta fiscal, deveria ter imediatamente realizado um novo contingenciamento. Não o fiz porque segui o procedimento, que não foi questionado pelo Tribunal de Contas da União ou pelo Congresso Nacional na análise das contas de 2009.

Além disso, a responsabilidade com a população justifica também nossa decisão. Se aplicássemos, em julho, o contingenciamento proposto pelos nossos acusadores, cortaríamos 96% do total de recursos disponíveis para a despesa da União. Isto representaria um corte radical em todas as dotações orçamentárias dos órgãos federais. Ministérios seriam paralisados, universidades fechariam suas portas, o Mais Médicos seria interrompido, a compra de medicamentos seria prejudicada, as agências reguladoras deixariam de funcionar. Na verdade, o ano de 2015 teria, para todos os efeitos fiscais, acabado em julho.

Volto a dizer: ao editar esses decretos de crédito suplementar, agi em conformidade plena com a legislação vigente. Em nenhum desses atos o Congresso Nacional foi desrespeitado. Aliás, este foi o comportamento que adotei em meus dois mandatos.

Somente depois que assinei esses decretos é que o Tribunal de Contas da União mudou a posição que sempre teve a respeito da matéria. É importante que a população brasileira seja esclarecida sobre este ponto: os decretos foram editados em julho e agosto de 2015 e somente em outubro de 2015 o Plenário do Tribunal de Contas da União aprovou a nova interpretação.

O Tribunal de Contas da União recomendou a aprovação das contas de todos os presidentes que editaram idênticos decretos, atos iguais aos que eu editei. Nunca levantaram qualquer problema técnico ou apresentaram interpretação que passaram a ter depois que assinei estes atos.

Querem me condenar por ter assinado decretos que atendiam às demandas da população, às demandas de diversos órgãos, inclusive do próprio Poder Judiciário, com base no mesmo procedimento adotado desde a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2001? Por ter assinado decretos que, somados, não implicaram, como provado nos autos, nenhum centavo de gastos a mais para prejudicar a meta fiscal?

A segunda denúncia dirigida contra mim neste processo também é injusta e frágil. Afirma-se que o alegado atraso nos pagamentos das subvenções econômicas devidas ao Banco do Brasil, no âmbito da execução do programa de crédito rural Plano Safra, para a agricultura comercial e para a agricultura familiar, equivale a uma operação de crédito, o que estaria vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Como minha defesa e várias testemunhas já relataram, a execução do Plano Safra é regida por uma lei de 1992, que atribui ao Ministério da Fazenda a competência de sua normatização, inclusive em relação à própria atuação do Banco do Brasil. A presidenta da República não pratica nenhum ato em relação à execução do Plano Safra. Parece óbvio, além de juridicamente justo, que eu não seja acusada por um ato inexistente.

A controvérsia quanto à existência de operações de crédito surgiu novamente de uma interpretação do TCU, cuja decisão definitiva foi emitida em dezembro de 2015. Novamente é uma tentativa de dizer que cometi um crime antes da definição da tese de que haveria um crime. Uma tese que nunca havia surgido antes e que, como todas as senhoras e senhores senadores souberam em dias recentes, foi urdida especialmente para esta ocasião.

Lembro ainda a decisão recente do Ministério Público Federal, que arquivou inquérito exatamente sobre essa questão. Afirmou não caber falar em ofensa à Lei de Responsabilidade Fiscal, porque eventuais atrasos de pagamento em contratos de prestação de serviços entre a União e instituições financeiras públicas não são operações de crédito.

Insisto, senhoras senadoras e senhores senadores: não sou eu nem tampouco minha defesa que fazemos estas alegações. É o Ministério Público Federal, que se recusou a dar sequência ao processo pela inexistência de crime.

Sobre a mudança de interpretação do TCU, lembro que ainda antes da decisão final agi de forma preventiva. Solicitei ao Congresso autorização para pagamento dos passivos e defini em decreto prazos de pagamento para as subvenções devidas. Em dezembro de 2015, após a decisão definitiva do TCU e com a autorização do Congresso, saldamos todos os débitos existentes.

Não é possível que não se veja aqui também o arbítrio deste processo e a injustiça desta acusação. Esse processo de impeachment não está praticando a justiça. Eu não atentei em nada, em absolutamente nada contra qualquer dos dispositivos da Constituição que como presidenta jurei cumprir. Não pratiquei ato ilícito. Está provado que não agi dolosamente em nada. Os atos praticados estavam inteiramente voltados ao interesse da sociedade. Nenhuma lesão trouxeram ao Erário ou ao patrimônio público.

Volto a afirmar, como fez a minha defesa durante todo o tempo, que este processo está marcado do início ao fim por um clamoroso desvio de poder. É isso que explica a absoluta fragilidade das acusações que contra mim são dirigidas.

Tem-se afirmado que este processo de impeachment seria legítimo porque os ritos e os prazos teriam sido respeitados. No entanto, para que seja feita a justiça e a democracia se imponha, a forma só não basta. É necessário que o conteúdo de uma sentença também seja justo. E, no caso, jamais haverá justiça na minha condenação.

Ouso dizer que em vários momentos esse processo se desviou clamorosamente daquilo que a Constituição e os juristas denominam de devido processo legal. Não há respeito ao devido processo legal quando a opinião condenatória de grande parte dos julgadores é divulgada e registrada pela grande imprensa antes do exercício final do direito de defesa. Não há respeito ao devido processo legal quando julgadores afirmam que a condenação não passa de uma questão de tempo, porque votarão contra mim de qualquer jeito.

Nesse caso, o direito de defesa será exercido apenas formalmente, mas não será apreciado substantivamente nos seus argumentos e nas suas provas. A forma existirá apenas para dar aparência de legitimidade ao que é ilegítimo por essência.

Senhoras e senhores senadores, nesses meses, me perguntaram inúmeras vezes por que eu não renunciava para encurtar este capítulo tão difícil da minha vida. Jamais o faria, porque tenho um compromisso inarredável com o estado democrático de direito. Jamais o faria, porque nunca renuncio à luta.

Confesso a vossas excelências, no entanto, que a traição, as agressões verbais e a violência do preconceito me assombraram e, em alguns momentos, muito me magoaram. Mas foram sempre superadas, em muito, pela solidariedade, pelo apoio e pela disposição de luta de milhões de brasileiras e brasileiros pelo país afora, por meio de manifestações de rua, reuniões, seminários, livros, shows, mobilizações da internet. Nosso povo esbanjou criatividade e disposição para a luta contra o golpe.

As mulheres brasileiras têm sido, neste período, um esteio fundamental para minha resistência. Cobriram-me de flores e me protegeram com sua solidariedade. Parceiras incansáveis de uma batalha em que a misoginia e o preconceito mostraram suas garras, as brasileiras expressaram, neste combate pela democracia e pelos direitos, sua força e resiliência. Bravas mulheres brasileiras, que tenho a honra e o dever de representar como primeira mulher presidenta da República.

Chego à última etapa deste processo comprometida com a realização de uma demanda da maioria dos brasileiros: convocá-los a decidir, nas urnas, sobre o futuro de nosso país. Diálogo, participação e voto direto e livre são as melhores armas que temos para preservar a democracia.

Confio que as senhoras senadoras e os senhores senadores farão justiça. Tenho a consciência tranquila. Não pratiquei nenhum crime de responsabilidade. As acusações dirigidas contra mim são injustas e descabidas. Cassar em definitivo o meu mandato é como me submeter a uma pena de morte política.

Este é o segundo julgamento a que sou submetida em que a democracia tem assento junto comigo no banco dos réus. Na primeira vez, fui condenada por um tribunal de exceção. Daquela época, além das marcas dolorosas da tortura, ficou o registro, em uma foto, da minha presença diante dos meus algozes num momento em que eu os olhava de cabeça erguida enquanto eles escondiam os rostos com medo de serem reconhecidos e julgados pela História.

Hoje, quatro décadas depois, não há prisão ilegal, não há tortura, meus julgadores chegaram aqui pelo mesmo voto popular que me conduziu à Presidência.

Tenho por todos, por isso, o maior respeito, mas continuo de cabeça erguida, olhando nos olhos dos meus julgadores.

Apesar das diferenças, das grandes diferenças, sofro de novo com o sentimento de injustiça e o receio de que, mais uma vez, a democracia seja condenada junto comigo. E não tenho dúvida de que, também desta vez, todos nós seremos julgados pela História.

Por duas vezes vi de perto a face da morte: quando fui torturada por dias seguidos, submetida a sevícias que nos faziam duvidar da Humanidade e do próprio sentido da vida; e quando uma doença grave e extremamente dolorosa poderia ter abreviado a minha existência. Hoje eu só temo a morte da democracia, pela qual muitos de nós, aqui neste plenário, lutamos com o melhor dos nossos esforços.

Reitero: respeito os meus julgadores. Não nutro rancor por aqueles que votarão pela minha destituição. Respeito e tenho muito apreço por aqueles que têm lutado bravamente pela minha absolvição, aos quais serei eternamente grata.

Neste momento, quero me dirigir aos senadores que, mesmo sendo de oposição a mim e a meu governo, estão indecisos. Lembrem-se de que, no regime presidencialista e sob a égide da nossa Constituição, uma condenação política exige obrigatoriamente a ocorrência de um crime de responsabilidade, cometido dolosamente e comprovado de forma cabal. Lembrem-se do terrível precedente que a decisão pode abrir para outros presidentes que virão, governadores e prefeitos, atuais e futuros. Condenar sem provas substantivas, condenar um inocente, é esse o precedente.

Faço um apelo final a todos os senadores: não aceitem um golpe que, em vez de solucionar, agravará a crise brasileira. Peço que façam justiça a uma presidente honesta, que jamais cometeu qualquer ato ilegal, na vida pessoal ou nas funções públicas que exerceu. Votem sem ressentimento. O que cada senador sente por mim e o que nós sentimos uns pelos outros importa menos, neste momento, do que aquilo que todos nós sentimos pelo país e pelo povo brasileiro.

Peço: votem contra o impeachment! Votem pela democracia! Muito obrigada.”

DESLEALDADE

Ao longo do processo de impeachment, Dilma acusou o presidente interino, Michel Temer, de ser “conspirador” e “cúmplice do golpe”.
 

DITADURA

Nas décadas de 1960 e 1970, a presidente afastada militou em organizações da luta armada que combatiam a ditadura militar (1964-1985). Ficou quase três anos presa, entre 1970 e 1972, e foi torturada, em sessões que envolviam choques elétricos e o pau-de-arara.

GETÚLIO, JK E JANGO

Getúlio Vargas se suicidou no Palácio do Catete em agosto de 1954. O então presidente enfrentava uma ferrenha oposição, comandada pela UDN. O cenário se agravou após o episódio conhecido como “Atentado da Tonelero”, que tinha Carlos Lacerda como alvo, mas acabou vitimando o major Rubens Vaz. A investigação, comandada pela Aeronáutica, concluiu que o chefe da guarda pessoal de Getúlio, Gregório Fortunato, estava envolvido no crime. A oposição, além de generais da Aeronáutica e da Marinha, passaram a exigir a renúncia do presidente. Já a Revolta de Aragarças foi uma tentativa frustrada de setores militares tomarem o poder em 1959, durante o governo de Juscelino Kubitschek. João Goulart, por sua vez, teve a posse ameaçada por militares depois da renúncia de Jânio Quadros. Um acordo político instalou o parlamentarismo no Brasil, com Tancredo Neves como primeiro-ministro, e Jango na Presidência. Em 1963, um plebiscito restaurou o presidencialismo. Dilma não citou Fernando Collor, que sofreu um impeachment.
 

MINISTÉRIO SEM MULHERES

Todos os 24 ministérios de Temer são chefiados por homens. O governo chegou a convidar mulheres quando decidiu recriar o Ministério da Cultura, mas nenhuma delas aceitou o cargo, e a pasta ficou com Marcelo Calero. O Palácio do Planalto argumenta que há mulheres em posições relevantes, como a presidência do BNDES, ocupada por Maria Silvia Bastos Marques.
 
RELAÇÃO COM O CONGRESSO
A relação de Dilma com o Congresso deteriorou-se no segundo mandato. A piora na relação foi provocada especialmente pelo antagonismo com o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, que poderá ser cassado. A vitória apertada na eleição de 2014, em uma disputa tensa, também acirrou os ânimos com a oposição.
 

CONQUISTAS DOS 13 ANOS

Os governos petistas, primeiro com Luiz Inácio Lula da Silva e depois com Dilma Rousseff, aceleraram a distribuição de renda e contribuíram para a redução da miséria no país. O programa Bolsa Família é uma das marcas do período. O acesso às educações básica e superior também cresceu. Até a situação fiscal se agravar, em 2014, o país viveu anos de crescimento econômico.

PAUTAS-BOMBA

Dilma vetou alguns projetos aprovados pelo Congresso que implicavam em aumento dos gastos públicos, em um momento em que o governo buscava reequilibrar as contas. Entre as medidas, estavam o reajuste aos aposentados e pensionistas pelo mesmo percentual aplicado ao salário mínimo, o reajuste entre 53% e 78% para servidores do Judiciário e o fim do fator previdenciário. Após intensa negociação, os vetos foram mantidos pelo Congresso.
 

ALIANÇA GOLPISTA

A tensa relação do governo com o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, chegou ao ápice quando ele decidiu dar prosseguimento a um dos pedidos de impeachment que tramitavam na Câmara. Pouco antes, os três deputados do PT no Conselho de Ética haviam anunciado que votariam a favor da continuidade do processo de cassação de Cunha.

PLANO SAFRA

O Plano Safra oferece linhas de crédito para a agricultura familiar e empresarial. Uma das bases do pedido de impeachment são as “pedaladas fiscais”, que consistem no atraso sistemático nos repasses do Tesouro Nacional para bancos públicos, com o objetivo de melhorar artificialmente as contas. De acordo com a acusação, a prática configura operação de crédito, o que é vetado entre o governo e uma instituição controlada por ele. No caso citado, a União represou os repasses ao Banco do Brasil para o financiamento do plano.
 
CABEÇA ERGUIDA
Dilma foi enquadrada na Lei de Segurança Nacional e condenada por subversão por sua atuação contra a ditadura militar. Uma foto do dia do julgamento mostra a presidente afastada, então com 22 anos, em um tribunal militar, no Rio. Os dois militares que aparecem na imagem estão escondendo os rostos com as mãos.